Publicado em 02.08.16 no Conversa Afiada um bate-papo com o jornalista e blogueiro Paulo Henrique Amorim sobre a falta de medicamentos em São Paulo, para tratamento de diabetes e outras condições de saúde.
Leia e ouça como foi essa conversa:
No estado de São Paulo, pessoas que sofrem de diabetes encaram desafios que vão além da própria doença: não conseguem sequer ter acesso a medicamentos que deveriam ser distribuídos gratuitamente. Sobre este assunto, o Conversa Afiada entrevistou a Dra. Débora Aligieri:
PHA: A senhora tem um blog-portal em favor dos direitos das pessoas com diabetes; em defesa do SUS integral, universal, equânime, gratuito e com participação social. O que faz este blog-portal?
Dra. Débora: São, na verdade, dois portais: um é o Blog Débora Aligieri Advocacia, que é o portal do meu escritório e que eu queria trazer para mais próximo das pessoas, deixar mais acessíveis as questões que envolvem o direito à saúde e como isso é tratado dentro do Poder Judiciário; o outro blog é o Diabetes e Democracia, que é um portal para um debate sobre saúde de uma forma mais ampliada. Entendo que a saúde se relaciona não só com questões biológicas, mas principalmente com questões políticas, sociais, econômicas... Tudo o que interfere no que a gente entende por saúde, que é qualidade de vida das pessoas. Esse blog é voltado mais para pessoas com diabetes, que é a doença que eu tenho há 30 anos (tipo 1), e acabei militando nessa área. Eu sou militante na saúde, mas com foco em favor da dignidade humana das pessoas com diabetes.
PHA: Qual é a ação judicial que a senhora move em defesa dos diabéticos?
Dra. Débora: Em defesa dos diabéticos, em geral, são pedidos de tratamento pelo SUS. Em alguns casos, não são nem ações judiciais, mas orientações de como ter acesso a essa assistência farmacêutica, porque nem sempre está muito claro para o usuário do SUS quais procedimentos ele deve tomar. Tem algumas informações nos sites das Secretarias Municipal e Estadual de Saúde, mas não são tão acessíveis assim. Em alguns casos, é mais orientação. Em outros casos, quando a pessoa já fez esse contato com as Secretarias de Saúde e não conseguiu acesso a medicamento ou terapia de que ela precisa, aí eu entro com ação judicial para ela ter acesso a esse medicamento que normalmente não é padronizado pelo SUS. Toda doença tem um protocolo específico de medicamentos que são destinados às pessoas, obedecendo a um padrão geral. No caso de diabetes, existem algumas questões mais complicadas, porque a gente tem um padrão de medicamentos que funciona bem para diabetes tipo 2 - 90% dos casos -, mas para os outros, do tipo 1 - a maior parte dos meus clientes -, esse padrão não é adequado.
PHA: Qual é a diferença entre o tipo 1 e o tipo 2?
Dra. Débora: O tipo 1 é autoimune, então o próprio corpo ataca e a pessoa deixa de produzir insulina por completo. O tipo 2 está associado a pré-disposição genética, hábitos alimentares, hábitos de vida e a pessoa apresenta uma resistência a insulina, que não atua como deveria atuar. Então, ela produz um pouco, mas não adequadamente.
PHA: Aparentemente, em junho de 2014, havia 330 mil ações na Justiça para receber remédios. A senhora consegue atualizar esses números?
Dra. Débora: Esse foi um relatório feito pelo Conselho Nacional de Justiça. Eles não têm dados mais atuais, mas imagino que com certeza os números cresceram.
PHA: Quais são os remédios ou medicamentos que mais são pedidos, mas que menos são recebidos?
Dra. Débora: Depende da situação da pessoa. Em relação a diabetes, o que mais se pede são análogos de insulina, que faltam um pouco - dos dez medicamentos em ações judiciais, os três primeiros são análogos de insulina. Dez por cento das ações dentro do estado de São Paulo são em benefício de pessoas com diabetes, o maior número que tem. Tem um comprimido, um antidiabético oral, que é para tratamento de diabetes tipo 2 e que se chama comercialmente de Janumet. Ele não é tão comum, são pouquíssimas pessoas que o tomam, então ele costuma faltar com frequência. É isso o que eles dizem. Tem um cliente meu que ficou sem receber 4 meses no ano passado, voltou a receber no começo deste ano e, desde abril, está sem receber da Secretaria Estadual de Saúde. Eles alegam que não há muita gente que recebe, então não têm muitos em estoque.
PHA: Em julho deste ano, segundo notícia da Folha, o Ministério Público descobriu que há uma falta generalizada de medicamentos em São Paulo: dos 400 medicamentos que deveriam ser distribuídos gratuitamente, 100 estão em falta. É isso?
Dra. Débora: Eu olhei esse documento do Ministério Público - tem disponível na internet - e o que foi apurado não é exatamente o que a Folha passou. Na verdade, eles citam ali: falta de 227 medicamentos, principalmente do componente especializado. No fornecimento do SUS, você tem: componentes de atenção básica e componentes de atenção especializada, que são para tratamentos mais complexos, medicamentos de alto custo, justamente os que estão faltando. Tem um exemplo de cliente meu: idoso, ele estava recebendo medicamento em casa desse componente da farmácia especializada, e em abril parou de receber. Disseram que estavam sem. E justamente esse medicamento, que é para tratamento de problemas cardiovasculares, está nesse inquérito civil do MP-SP, dizendo que foi pedido desde abril pela Organização Social que administra esse centro de distribuição, mas a Secretaria Estadual de Saúde não fez a compra.
PHA: Qual é a autoridade mais relapsa: o SUS, a Secretaria Estadual de Saúde ou a Secretaria Municipal de Saúde?
Dra. Débora: Eu faço uso da assistência farmacêutica desde 2006. De lá para cá, tanto pelo estado quanto pelo município, chega a faltar alguma coisa. Mas eu tenho a impressão de que, de uns tempos para cá, são os dois. A princípio, eles não tinham muita transparência, não passavam muitas informações, e agora estão passando. Eu acho que isso, para mim, é o mais importante: você dá opções de o usuário fazer esse controle social, conversar, ter informação... Às vezes, é a própria empresa que não fornece o medicamento para a Secretaria Estadual de Saúde, e o usuário pode cobrar da empresa, mas ele precisa saber que às vezes o fornecedor do medicamento também é relapso, não só as Secretarias Municipal e Estadual de Saúde. A questão é que nós estamos tendo um retrocesso, porque hoje estive lá numa unidade distribuidora do estado de São Paulo e a ouvidora desse local me falou que, até então, sempre que faltava medicamento ela olhava nos arquivos e registros do computador e falava 'olha, está em estoque, está comprando etc'. Hoje, ela me falou que cortaram esse acesso para ela, que ela passava para os usuários do SUS. Quer dizer menos transparência.
PHA: O usuário fica sem saber o que vai acontecer com o remédio de que precisa.
Dra. Debóra: Exatamente.
PHA: E quando um diabético não recebe esse remédio de que precisa e que recebeu, na Justiça, uma decisão que obriga o estado a entregar o remédio a ele, qual é a alternativa: comprar na farmácia, reclamar com a senhora, com o bispo...?
Dra. Débora: Olha, todas as alternativas (risos). Esse é um tratamento para uma doença crônica, então ele não pode ficar nenhum dia sem o medicamento. E às vezes você chega lá no balcão, olham para a sua cara e dizem com a maior naturalidade do mundo: 'não tem insulina' - como se qualquer pessoa pudesse ficar sem insulina!
PHA: Como se fosse esparadrapo...
Dra. Débora: Exatamente! Nesses momentos, tem a ouvidoria do próprio órgão que foi instalada há alguns anos e que ajudou muito a melhorar. Então, você faz uma reclamação para a ouvidoria do SUS e eles são obrigados, a partir disso, a processar essa reclamação, a dar uma resposta. Aí eles dizem 'olha, estamos averiguando', 'vai ser comprado'... Vai dar esse retorno. O que, às vezes, dá algum problema, porque se falta por meses seguidos - no caso desse meu cliente, faltou por vários meses o comprimido, foi registrar de novo e não conseguiu, porque falaram que ele já havia feito o registro. Lógico que ele já tinha um registro anterior! Então, faz essa reclamação. No processo, eu peço bloqueio da conta do estado, porque, se o estado não fornece, então eu vou transferir essa verba do estado para a conta do meu cliente, para ele comprar. Só que raríssimos são os casos... muitos juizes não se sentem à vontade para fazer isso, alguns se incomodam claramente.
PHA: Não tem juiz com diabetes?
Dra. Débora: (risos). Tem juiz diabético que cuida de causas assim. Uma das formas de resolvermos essa situação é ter mais transparência. Esse inquérito civil do MP-SP recomenda que a Secretaria Estadual de Saúde coloque no site a lista dos medicamentos que estão em falta e qual é o status disso. Fui olhar hoje e não está no site essa relação. Então, temos que cobrar.
Em tempo: a Dra. Débora acrescenta:
"Também tem faltado muito o medicamento Victoza (fornecido tanto através de ordens judiciais, como através de pedidos administrativos ao Estado; a SES-SP não fornece já há dois meses). Tive uma experiência muito bacana com a ouvidoria municipal da Saúde quando faltaram lancetas para teste de glicemia (escrevi um texto no blog, enviei ao Secretário Municipal de Saúde, ao Conselho Municipal de Saúde e publiquei na Rede HumanizaSUS - é importante falar dos blogs e redes sociais de saúde como ferramenta de cidadania direta para regularização do fornecimento de medicamentos - e recebi um retorno bastante atencioso da ouvidoria, e as lancetas voltaram a ser fornecidas).
Fonte: Conversa Afiada
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