terça-feira, 12 de julho de 2016

O tamanho do SUS e a restrição de fornecimento de fitas medidoras em Belo Horizonte

Em 16 de maio deste ano de 2016, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o Ministro da Saúde do governo interino Michel Temer afirmou que o tamanho do SUS deveria ser revisto, que não havia recursos suficientes para "dar tudo a todos" (1). Na semana passada, os portadores de diabetes insulino-dependentes da cidade de Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais, tiveram uma pequena prova do que seria esse "SUS reduzido" (sem atendimento universal à saúde).

Conforme noticiado em vários jornais regionais, na quarta-feira dia 06 de julho de 2016, a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte emitiu nota técnica afirmando que vai restringir o fornecimento de fitas para monitoração de glicose a alguns casos de pacientes com diabetes (apenas para crianças com menos de 12 anos de idade e para gestantes e pacientes em diálise renal) por falta de dinheiro, razão pela qual também não vai mais fornecer o material no segundo semestre de 2016.

Em nota de repúdio, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia - SBEM, regional Minas Gerais, esclarece que as fitas são fornecidas para todos os pacientes em uso de insulina há mais de 15 anos, atendendo a protocolos internacionais de tratamento de diabetes, que mostram, claramente, a importância da monitoração glicêmica nos pacientes em uso de insulina tanto para a eficácia do tratamento quanto para a segurança da pessoa que aplica a insulina, e que a medida da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte assemelha-se a aconselhar uma pessoa a dirigir um carro em autoestrada com os olhos vendados (https://ammg.org.br/?noticia=nota-oficial-da-sbem-mg).

Numa situação de restrição de direitos como essa, que promete se proliferar Brasil afora frente aos ajustes fiscais (leia-se redução de investimentos na área de saúde)
promovidos pelo Governo interino, o que fazer?


Recorrer aos planos de saúde? 

Nos Estados Unidos, onde o sistema de saúde é bastante precário, um bom plano de saúde fornece medicamentos e insumos para o tratamento de doenças crônicas como diabetes. Mas no Brasil, com raras exceções previstas em leis específicas (como em alguns casos de câncer, por exemplo), o fornecimento de insumos e medicamentos está excluído das obrigações das operadoras (artigo 10, inciso VI, da Lei nº 9.656/98), e não consta do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de serviços mínimos obrigatórios dos planos de saúde.

No mesmo dia 06 de julho de 2016, o Ministro da Saúde do Governo interino defendeu a criação de um plano de saúde popular, com menos serviços do que os definidos no rol mínimo obrigatório da ANS (2), como forma de "aliviar gastos" (investir menos) com o SUS, mas essa seria uma medida que não ajudaria as pessoas com diabetes, já que no mínimo previsto não consta o fornecimento de medicamentos e insumos. Na mesma ocasião, o Ministro defendeu a redução da cobertura mínima dos planos de saúde (2). Portanto, o fornecimento de insumos e medicamentos para o tratamento de diabetes não é uma ampliação de direitos que se mostra possível neste momento.

Além disso, conforme dados de 2014 do Tribunal de Contas da União (3), apenas 25% da população brasileira tem plano de saúde. Assim, essa seria uma solução não universal, ou seja, apenas uma pequena parcela de pessoas com diabetes conseguiria receber as fitas medidoras de seu plano de saúde se numa situação longe da nossa realidade atual esse fosse um direito garantido pela lei e pela ANS, ficando as demais desprotegidas.


Propor uma ação judicial? 

Solicitar ao Poder Judiciário uma ordem para que o SUS continue fornecendo as fitas medidoras (tiras reagentes) a todas as pessoas com diabetes insulino-dependentes, conforme direito previsto no artigo 1º, inciso II, da Portaria nº 2.583/2007 do Ministério da Saúde, por enquanto, é uma solução viável.

Mas o Ministro da Saúde do Governo interino também vem estudando medidas para restringir a possibilidade de ordens judiciais que determinem o fornecimento de tratamentos de saúde. No início de junho foi noticiada uma reunião no Ministério da Saúde (4), sem a presença de representantes da sociedade civil (como associações de pacientes, por exemplo), em que se apresentou como solução à judicialização da saúde a ampliação do número de Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT´s).

Esses núcleos, já em funcionamento em alguns Estados do Brasil como São Paulo (5), fornecem pareceres aos magistrados para subsidiar pedidos judiciais relativos a tratamentos e serviços pelo SUS, e a coberturas e atendimentos pelos planos de saúde. Mas os NAT´s são compostos, em regra, apenas por funcionários de Secretarias de Saúde (para apreciação de demandas ao SUS) e por associações de operadoras (para análise de pedidos aos planos de saúde), deixando de fora Conselhos de Saúde, que representam os usuários do SUS, e órgãos de defesa do consumidor (que representam os associados de planos de saúde).

Nessa questão das fitas medidoras, provavelmente todos os NAT´s seriam favoráveis ao pedido, já que as tiras integram (ainda!) o protocolo do SUS em diabetes. Mas de onde viria o dinheiro para a compra, se as Secretarias Municipal e Estadual de Saúde afirmam que não há mais verba para tanto até o final deste ano? E uma ação judicial só beneficiaria todas as pessoas com diabetes insulino-dependentes se fosse uma ação coletiva, porque uma ordem judicial expedida numa ação individual só garante o direito do autor da ação.


Defender o SUS integral, universal, equânime e gratuito?

Para garantir a manutenção (a ampliação, nesse momento de redução dos direitos sociais pelo Governo interino, parece uma utopia!) dos direitos das pessoas com diabetes, a única forma eficaz de luta é a defesa do SUS tal qual previsto na Constituição Federal: integral, universal, equânime (respeitando as necessidades diferenciadas em saúde, tratando os desiguais desigualmente) e gratuito. 

A luta pelos direitos das pessoas com diabetes que não considera como pressuposto a luta em defesa do SUS é absolutamente inócua! 

Por essa razão, nós, militantes e ativistas dos direitos das pessoas com diabetes (pois não lutamos pela doença, lutamos pela dignidade humana das pessoas com diabetes) temos que sair de nosso gueto patológico para nos unirmos aos demais brasileiros e brasileiras, com ou sem diabetes, para defender a manutenção do SUS através do financiamento público adequado.

Com a aprovação do orçamento impositivo em 2015, segundo avaliação do Conselho Nacional de Saúde, os investimentos federais no SUS foram reduzidos em cerca de 10 bilhões de reais (6). Mas há medidas que podem reduzir ainda mais os investimentos públicos (federais, estaduais e municipais) propostas pelo atual Governo interino e pelo Congresso Nacional, e que colocam o SUS constitucional em sério risco de extinção:

- PEC 241, que estabelece limites aos investimentos em saúde, e pode representar um corte de R$ 12 bilhões nos próximos dois anos (http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/07/ameacas-ao-sus-e-corte-de-verbas-para-a-saude-preocupam-deputados-e-entidades-sociais-5255.html);

- PEC 143/2015, que desvincula receitas da União (DRU), dos Estados (DRE) e dos Municípios (DRM) no patamar de 25%, ou seja, permite que 25% de tributos destinados à saúde sejam usados para qualquer outra finalidade considerada prioritária pelos governos Federal, Estaduais e Municipais, que pode representar um corte de R$ 80 bilhões do SUS (http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-04/entidades-estimam-perda-de-r-80-bilhoes-para-o-sus-com-aprovacao-de-pec);

- projeto (inconstitucional) do Governo interino e do PMDB de extinguir o financiamento mínimo em saúde (estabelecido nos parágrafos do artigo 198, da Constituição Federal, e regulamentado pela Lei Complementar nº 141/2012), deixando ao critério de cada Governante o montante a ser investido em saúde (http://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160517_desvinculacao_saude_ab);

- projeto de lei nº 4.567/16, aprovado pela Câmara dos Deputados (http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ECONOMIA/512051-COMISSAO-APROVA-FIM-DA-EXCLUSIVIDADE-DA-PETROBRAS-NO-PRE-SAL-TEXTO-VAI-AO-PLENARIO.html), que acaba com a exclusividade de exploração do pré-sal pela Petrobrás  e diminui os recursos do fundo social, dos quais 50% são destinados à saúde e à educação (http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/09/28/diminuir-participacao-da-petrobras-no-pre-sal-prejudicara-saude-e-educacao-dizem-sindicalistas).


Há ainda outras medidas que, direta ou indiretamente, representam o enfraquecimento do SUS e riscos à atenção integral à saúde das pessoas, com e sem diabetes: PL 350/2014 - ato médico (7), Lei nº 13.301/16, que permite a pulverização de áreas urbanas com agrotóxicos (8), enfraquecimento da ANS (9), PEC 451/2014, que obriga todos os empregadores a garantirem a seus empregados planos de saúde (10), a gradativa implantação do modelo de "cobertura universal" (11), enfraquecimento do programa Mais Médicos (12), e ampliação das parcerias público-privadas (13), entre outros projetos que podem agravar o subfinanciamento do SUS e ainda vender (literalmente!) a ideia de que os planos de saúde seriam a solução que, como no caso das fitas medidoras de Belo Horizonte e em muitos outros, está provado que não seriam.

Além de Belo Horizonte, na cidade de São Paulo alguns pacientes também sofrem desde abril com a falta de medicamentos (como atorvastatina, destinada ao tratamento de doenças cardiovasculares) do programa "Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF)" da Secretaria Estadual de Saúde, conforme relato que me foi feito pessoalmente por um usuário do SUS.

Assim, além das medidas necessárias para que as Secretarias de Saúde e o Ministério da Saúde continuem cumprindo sua obrigação de atendimento às necessidades de saúde - como denúncia ao Ministério Público, como foi feito no caso das fitas medidoras em Belo Horizonte (14) - de todos os usuários do SUS, sem exceção, precisamos lutar contra esses projetos que retiram o financiamento do SUS e colocam em risco o direito de acesso à saúde universal, integral e equânime. 

Como alternativas de resistência, podemos ocupar as ruas e participar das manifestações em defesa do SUS que vem acontecendo pelo país, e manifestar através das redes sociais, dos blogs, de mensagens aos congressistas, de reportagens, e de todas as formas possíveis de comunicação virtual e territorial, que queremos um SUS do tamanho do povo brasileiro, sem restrições de acesso aos serviços e atendimentos.



  
Agradeço a ajuda da amiga, militante da saúde e Professora da UFSCAR Sabrina Ferigato na curadoria de assuntos trazidos na argumentação desse post.


Referências:



(3)  Relatório Sistêmico de Fiscalização da Saúde do TCU (página 44 e seguintes: http://portal3.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/imprensa/noticias/noticias_arquivos/032.624-2013-1%20Fisc%20Saude.pdf 

(4) Reunião com ministro da Saúde discute ações para reduzir judicialização: http://adpep.org.br/reuniao-com-ministro-da-saude-discute-acoes-para-reduzir-judicializacao/

(5) Núcleo de apoio à solução de demandas contra planos de saúde do TJ-SP: desequilíbrio de forças: http://deboraligieri.blogspot.com.br/2015/07/nucleo-de-apoio-solucao-de-demandas.html

(6)  Conselho Nacional de Saúde critica aprovação do Orçamento Impositivo: http://www.ebc.com.br/noticias/2015/02/conselho-nacional-de-saude-critica-aprovacao-do-orcamento-impositivo

(7) Entenda os riscos do ato médico e assine petição pública contra a sua aprovação: http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR90745

(8) Pulverizar cidades com agrotóxicos é demanda da indústria apoiada pela bancada ruralista, alerta pesquisador: https://saude-popular.org/2016/07/pulverizar-cidades-com-agrotoxicos-e-demanda-da-industria-apoiada-pela-bancada-ruralista-alerta-pesquisador-da-fiocruz/

(9) Ministro da Saúde diz que não vai controlar qualidade de plano privado: http://odia.ig.com.br/brasil/2016-05-18/ministro-da-saude-diz-que-nao-vai-controlar-qualidade-de-plano-privado.html

(10) Nota da ABRASCO: a PEC 451 viola o direito à saúde e promove a segmentação do SUS: https://www.abrasco.org.br/site/2015/03/nota-a-pec-451-viola-o-direito-a-saude-e-promove-a-segmentacao-do-sus/

(11) Artigo 34 | Temer: políticas de saúde pobres para os pobres: http://plataformapoliticasocial.com.br/artigo-34-temer-politicas-de-saude-pobres-para-os-pobres/

Esse é o modelo de sistema de saúde com "cobertura universal", proposto por instituições como o Banco Mundial, a partir da concepção ultrapassada de saúde como ausência de doenças (e não como qualidade de vida), que o atual Ministro da Saúde pretende implantar no Brasil:

"Desde sua implantação, em 1993, o SGSSS aumentou a cobertura, atingindo atualmente 96% da população colombiana. Entretanto, as desigualdades entre os “pacotes” de serviços e do acesso devido a barreiras econômicas foram exacerbadas. Em 2007, por exemplo, apenas 28% dos usuários do Plano Obrigatório Subsidiado (POS-S), que abrange 48% da população colombiana, tinha uma consulta médica para controle de diabetes. Esta proporção era muito maior entre os usuários de outros planos – 64% para os usuários do Regime Especial (RE) e 59% para os usuários do Plano Obrigatório de Saúde (POS). O mesmo problema na desigualdade do acesso persiste para outras especialidades"

(13) Mario Scheffer: “Se não resolver o financiamento da saúde, qualquer proposta é firula”: https://www.abrasco.org.br/site/2016/05/mario-scheffer-se-nao-resolver-o-financiamento-da-saude-qualquer-proposta-e-firula/

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