quinta-feira, 30 de julho de 2015

Preparo e aplicação de insulina sem mistério (e sem preconceitos)

Por recomendação médica, você está fazendo tratamento com insulina para promover um melhor controle do seu diabetes. Milhões de pessoas em todo o mundo dependem de injeções de insulina, e muitas ainda estão presas a mitos e receios relacionados a este tratamento. Porém, não há nada a temer quando se aplica a insulina certa, na dose certa, com a técnica correta, sob devida orientação e acompanhamento profissional.

Hoje, as insulinas modernas são produzidas com tecnologias bastante avançadas, apresentando um perfil de ação que proporciona eficácia e segurança no uso, quando o paciente adere às recomendações profissionais. De nada adianta utilizar a melhor insulina se ela não for preparada e aplicada corretamente.
 
Neste manual prático sobre preparo e aplicação de insulina, você encontrará informações fundamentais que irão ajudá-lo a atingir o bom controle do diabetes.

Estamos à sua disposição para proporcionar todo apoio que você necessita para melhorar sua técnica de aplicação, atuando como recurso auxiliar de orientação para que você tire o melhor proveito do tratamento com insulina indicado pelo médico.

Baixe aqui o manual prático Preparo e aplicação de insulina sem mistério

Enfª Márcia Camargo de Oliveira Supervisora de Treinamento Técnico - BD Diabetes Care. Membro do Departamento de Enfermagem da Sociedade Brasiliera de Diabetes - SBD

Fonte: Sebastian Freire, Rede HumanizaSUS e BD Bom Dia



Que barato esse manual! Lembrei de quando fui diagnosticada com diabetes em 1986. A seringa que usava para aplicar insulina não era como o primeiro modelo da foto, mas era bem mais rústica (e com uma agulha bem maior) do que as atuais. Tenho alguns colegas com mais de 30 anos de diagnóstico que chegaram a usar a seringa que se fervia para a reutilização, assim como se amolava a ponta da agulha. Nesse sentido, vejo como o avanço da tecnologia médica ajudou no nosso autocuidado. Em 1986 também não existia o SUS, e a minha família custeava todo o meu tratamento. Embora eu considere o protocolo do SUS em diabetes tipo 1 insuficiente ao atendimento das diretrizes da integralidade e da universalidade, o que existe disponível hoje na assistência farmacêutica e ainda em educação em diabetes é também um avanço enorme. 

Há um outro aspecto relacionado à aplicação de insulina que toca tanto o público em geral quanto as pessoas com diabetes: o desconhecimento da condição e da necessidade de se tomar a medicação através de injeções. Hoje mesmo participei de um debate num grupo de diabetes do facebook sobre uma abordagem policial por causa da aplicação de insulina: uma garota precisava tomar a insulina e, estando num ponto de ônibus, resolveu aplicar ali mesmo a injeção para que a glicemia não subisse. Uma pessoa que também estava no ponto interpelou policiais, que a abordaram com uma certa violência.

Há muitos relatos parecidos em shoppings centers, em que uma questão de saúde é tratada como questão policial, e a pessoa que necessita tomar a insulina vê-se impedida de aplicar a injeção. Já pensei em fazer um "insulinaço", com várias pessoas aplicando a injeção de insulina em público, para mostrar que este é um ato necessário à nossa sobrevivência, e que não existe risco às pessoas que estão no entorno. Uma campanha pública de conscientização sobre o direito das pessoas com diabetes - e outras doenças que envolvem aplicação de injeções - ao tratamento de saúde e à abordagem com dignidade também seria interessante.


Autoaplicação em público

No início de 2014, uma coluna de conselhos sugeriu que as pessoas com diabetes deveriam esperar até encontrar um lugar discreto para testar seu açúcar no sangue em vez de teste em público. Essa coluna causou fortes sentimentos entre a comunidade diabetes em ambos os lados. No texto a seguir, a autora Laura Kronen assume a posição oposta ao responder à reação do público a uma foto de si mesma injetando insulina em público:

Provavelmente, se você tem diabetes e não está sofrendo de um caso grave de agorafobia (temor ou medo angustiante que certas pessoas experimentam quando atravessam uma praça, uma rua, ou se vêem no meio da multidão), você provavelmente já teve de administrar insulina ou verificar o seu açúcar no sangue em um lugar público. Vou até mesmo mais longe para apostar que todas as pessoas com diabetes que lêm este artigo já fizeram uma demonstração pública de diabetes, pelo menos uma vez na vida, se não várias vezes por dia.

Recentemente, uma foto minha autoaplicando uma dose de insulina durante a noite teve grande repercussão na mídia social. Quase 2000 pessoas comentaram, gostaram, ou compartilharam esta fotografia, com o consenso geral sendo de aplausos para uma mulher cuidando bem de si mesma e não deixando o diabetes atrapalhar sua vida. Muitos pais de crianças com diabetes disseram que mostraram essa imagem para seus filhos como incentivo e inspiração. Para mim, essa foto diz "Quem se importa se o mundo assiste? Eu sou diabético e convivo muito bem com ele dele! Eu estou fazendo o que é preciso para se manter vivo, não importa quem esteja assistindo! "

Afinal de contas, ninguém tem vergonha de respirar direito público. E comer é perfeitamente aceitável também, não é? Engolir comprimidos ou usar um inalador também não é problema. Então, por que um grupo de pessoas, com e sem diabetes, teria problema em assistir esse procedimento de autoaplicação de insulina?

Alguns críticos desse procedimento foram tão longe a ponto de dizerem que as pessoas com diabetes ir ao seu carro para administrar insulina ou fazer um teste de glicose. Agora, eu não sei quanto a vocês, mas quando estou em um restaurante ou bar, eu, muitas vezes, preciso me injetar algumas vezes, dependendo do que eu realmente tenha comido. Eu não estou correndo para o banheiro duas a três vezes para verificar o açúcar no sangue ou para me injetar. Ser discreto é uma cortesia comum, assim como mastigar com a boca fechada. Nós todos podemos concordar que não há necessidade de fazer uma cena agitando uma seringa ou o dedo sangrando, mas eu acredito que se esconder em um banheiro público ou no banco da frente do seu carro é o envio de uma mensagem que você está envergonhado ou acredita que algo está errado com o que você está fazendo.

Em vez disso, sugiro que as pessoas que se sintam desconfortáveis com o olhar dos outros ao seu redor devem simplesmente desviar o olhar. Posso assegurar-lhes que eles não vão ter sérias complicações de saúde por ver alguém cuidar de seus diabetes. Cuidar do diabetes não é uma festa. É um trabalho diuturno que não pode ser prejudicado por preconceitos sociais.

Como as pessoas com diabetes, é preciso conscientizar aqueles que não estão informados sobre a doença. Ainda mais importante, precisamos ser modelos e incentivar outras pessoas que sofrem com esta doença para cuidar de sua saúde, não importa onde eles estejam. Não há nada de errado com você, exceto que seu pâncreas decidiu tirar umas férias permanentes. Faça o que você precisa para sobreviver e viver sua vida em voz alta.

Fonte: Sociedade Brasileira de Diabetes e Insulin Nation


quarta-feira, 29 de julho de 2015

Pelo reconhecimento dos direitos da natureza

 
 Imagem: Revista Ecofenix
 
A última Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – Rio+20, em seu enunciado 39, reconheceu, como forma de conquistar o almejado desenvolvimento sustentável, a necessidade dos Estados promoverem a harmonia com a natureza e que o Planeta Terra é nosso “lar”, considerado por muitas culturas como a Mãe-Terra.
 
O Brasil é um dos expoentes na preservação de sua cultura indígena, de onde se origina a consideração da Terra e de todos os membros da natureza como mãe e irmãos, respectivamente.
 
Neste sentido, muitos países, a exemplo do Equador que, assim como o Brasil, guarda relação com a primeva cultura indígena, fez reconhecer os direitos da natureza em sua legislação pátria.
 
A dignidade do planeta Terra é assunto da comunidade planetária e tem sido discutido por toda comunidade humana internacional. Desde 1972, com a realização da Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente, em Estocolmo, seguindo-se das reuniões realizadas no Rio de Janeiro nos anos de 1992, 2002 e mais recentemente a Rio+20 em 2012, a comunidade internacional tem se prestado ao debate com anotações de princípios relevantes à tomada de decisões internas por cada um dos Estados-parte, notadamente a internalização da proteção ambiental às legislações, a exemplo do Brasil em sua Constituição Federal, promulgada em 1988.
 
Neste sentido, a Organização das Nações Unidas tem se prestado ao diálogo com a sociedade civil sobre as formas de caminhamento de uma relação de harmonia com a natureza. A ONU vem marcando o passo da humanidade e caminhando com proposições de relevância à consecução da mudança paradigmática de que o Planeta necessita para permanecer em sua condição de suporte da vida e para que o ser humano alcance os níveis de paz suficientes ao seu aproveitamento.
 
A “Harmony with Nature” são conversações que vêm sendo realizadas desde 2009 com a criação do dia mundial da Mãe -Terra – dia 22 de abril – e sendo recepcionadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em algumas Resoluções, com destaque para a de número 67, que reconheceu as diretrizes antes apontadas pela Rio+20 de que a Terra é nossa casa; da necessidade de se estabelecer uma relação de harmonia com a natureza e que para tanto é necessária uma abordagem holística e integrada.
 
Esse importante movimento das Nações Unidas, abriu um espaço fundamental para o reconhecimento pela comunidade mundial, da comunidade maior planetária enquanto sujeito de direitos, especialmente quando alguns de seus membros já fizeram promulgar leis que reconhecem tais direitos, como é o caso do Equador e da Bolívia, além de algumas legislações esparsas e jurisprudências que fazem referência aos direitos da natureza, da Nova Zelândia, da Índia, Estados Unidos e das comunidades locais de vários países do mundo.
 
A questão do reconhecimento dos direitos da natureza está intrinsecamente dependente de uma nova abordagem do próprio conceito de desenvolvimento sustentável, que preconiza o desenvolvimento com o adjetivo de ser sustentável apenas de maneira adjacente; desta forma, a pauta da economia de mercado continua no centro das políticas, havendo a necessidade de uma real mudança de paradigma para entender que não se trata da lida com recursos econômicos.
 
A primeira defesa de que se tem notícia sobre o valor intrínseco da natureza se deu ainda no final do século XIX com a célebre carta do chefe das tribos Suquamish e Duwamish quando, em 1854, o governo dos Estados Unidos tentava convencê-los a vender suas terras para dar prosseguimento à ocupação do território norte-americano com populações estrangeiras que chegavam ao país; ao que o grande chefe sioux respondeu: “Somos parte da terra e ela é parte de nós.
 
As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos das campinas, o calor que emana do corpo de um mustang, o homem - todos pertencem à mesma família.”
 
As teorias jurídicas sobre os direitos da natureza vêm sendo construídas ao longo de décadas, com referência especial ao “Contrato Natural” de Michel Serres e mais atualmente, destacando-se a publicação La Naturaleza com Derechos – De la filosofia a la política, organização de Alberto Acosta – líder equatoriano nos encaminhamentos da reforma da Constituição de seu país, pioneira na introdução da norma que assegura os direitos da natureza, consubstanciando-se no reconhecimento de maior dimensão face aos direitos da comunidade humana, os direitos da coletividade planetária da qual todos os humanos e demais coisas que em sua universalidade constituem o Planeta.
 
O Brasil tem se aproximado deste entendimento com as discussões sobre os Serviços Ambientais que, muito além da defesa dos valores econômicos da natureza, acabam por fazer transparecer seu valor inestimável, intangível, em relação, inclusive, ao próprio ser humano, tanto no que se refere à sua relação cultural - especialmente à identidade de algumas comunidades humanas e seus valores espirituais como no caso das comunidades indígenas e outras tradicionais – quanto no fato de que o valor intrínseco da natureza é correspondente ao próprio valor da vida, levando-se em conta que é o próprio suporte de manutenção da vida, de tudo quanto é vivente no Planeta, inclusive do ser humano. Afinal, quanto vale um único exemplar vivente se considerarmos os valores das vidas interdependentes dos demais exemplares, incluindo a vida humana?
 
Em 2011 foi publicado o marco teórico do Capitalismo Humanista - objeto da PEC 383/2014 - propugnando, diante da necessidade urgente da dignificação planetária, que seja finalmente reconhecido que somos todos, os membros da comunidade da Terra, irmãos, inaugurando-se um Planeta Humanista de Direito em evolução ao Estado Democrático de Direito, a partir do qual o Planeta se torna titular de direitos e destinatário de iure próprio. Seu autor, o professor livre docente Dr. Ricardo Hasson Sayeg afirma: [...] considerando-se o homem no meio difuso de todas as coisas, e o planeta como a universalidade delas, há que atribuir-se a este último a indispensável titularidade jurídica por meio da qual adjudicará para si a paz, com a inclusão e a emancipação de todos, o que significa democracia em seu sentido mais amplo.
 
A dignidade da coletividade maior, a planetária, reconhecida juridicamente, será o fundamento de um Planeta Humanista de Direito em evolução a um Estado Democrático de Direito que reconhece apenas a dignidade de uma parte da coletividade planetária, a humana. Para tanto o direito natural deve ser revisitado, em consideração à interdependência da vida de todos os viventes da comunidade planetária, que remete ao direito-dever comum do homem em preservar a vida digna do e no Planeta.
 
O reconhecimento da dignidade Planetária inaugura uma nova leitura do caput do artigo 225, na qual a expressão ‘todos’ inclui todas as coisas que em sua universalidade constituem o Planeta, assim como o próprio planeta Terra e a ‘sadia qualidade de vida’ se refere à vida per si assim representada na vida da comunidade planetária.
 
Saliente-se que esta proposta pressupõe a invocação do amor poiético originário entre todos os seres, por meio da aplicação integral da Lei Universal da Fraternidade, do Capitalismo Humanista, estabelecida numa nova etapa da humanidade - a da Consciência Universal - sob a perspectiva da biopolítica policêntrica afirmativa, de modo que os mecanismos tradicionais de repressão são abandonados em favor de práticas discursivas socializadas, centradas na cooperação dialógica entre subjetividades individuais e coletivas - precisamente os membros da comunidade planetária – ou seja, em favor da conversação, que pode resultar em novas alternativas para regulação e controle social tipificados na presença de sanções naturais e pedagógicas.

Confira o vídeo que conta a trajetória do reconhecimento dos Direitos da Natureza no mundo: 
 
 
 
Assine a petição da Avaaz em favor de uma Emenda à Constituição Federal para que os Direitos da Natureza sejam reconhecidos: https://secure.avaaz.org/po/petition/Congresso_Nacional_Emenda_a_Constituicao_Federal_para_que_reconheca_os_Direitos_da_Natureza/?preview=live

terça-feira, 28 de julho de 2015

O amor nos tempos da bioidentidade patológica

"sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos (...) mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito.

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (...) A genealogia, como análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a história."


Microfísica do Poder, Michel Foucault



Desde que me tornei sexualmente ativa, o uso de preservativo como método contraceptivo e preventivo de doenças sexualmente transmissíveis estava tão associado ao ato sexual quanto o encontro com outra pessoa. Minha iniciação sexual se deu em meados dos anos 90, época em que a mortalidade em função da AIDS começou a entrar em declínio após a descoberta do AZT e que se investiu em campanhas públicas de incentivo ao uso de camisinha para prevenção do contágio (1).

Até pouco tempo nunca havia percebido o quanto o momento histórico em que vivemos pode direcionar a forma como nos relacionamos com outras pessoas. Comecei a pensar sobre essa questão com mais afinco depois de assistir ao seriado "Deutschland 83", que conta a história de um jovem militar da Alemanha Oriental recrutado para trabalhar como espião na Alemanha Ocidental no ano de 1983. 


 

No episódio "Northern Wedding" o protagonista é interrogado por seus superiores na parte ocidental, principalmente em relação à assistente do Secretário-Geral da OTAN, com quem o rapaz começava a se relacionar para cumprir seu trabalho de espionagem. No interrogatório, um dos generais diz algo como "Você não perde tempo hein rapaz?", e ele responde "É 1983". O capítulo está repleto de referências históricas da AIDS: a mãe de uma das personagens que vive em uma comunidade pacifista recomenda o uso de preservativo para se proteger da nova doença, e a filha replica dizendo que apenas gays integram o grupo de risco, o que hoje sabemos não ser verdadeiro. Assim como sabemos que é possível se relacionar com pessoas com AIDS e portadoras do HIV sem qualquer problema.
 
A resposta ficou ressoando na minha cabeça "É 1983", pós anos 70 e sua revolução sexual, em que ainda conhecíamos pouco as circusntâncias da AIDS, e temíamos a doença. Esse é o subcontexto da frase em questão. Na minha história pessoal a frase seria uma continuidade desse período, "estávamos nos anos 90", quando já sabíamos do HIV e de suas formas de transmissão
, e começávamos a aprender que pessoas com AIDS são como qualquer um de nós, pessoas.
 
Nessa época eu já convivia com o diabetes, mas o diagnóstico não era o que pautava os meus relacionamentos. Não me identificava como diabética nos meios que frequentava. Passei a informar minha condição a partir de 2006, depois que sofri uma crise espasmódica de hipoglicemia no trabalho e ninguém sabia que um refrigerante ou um suco poderiam recobrar minha consciência. Com a atividade de militância em prol dos direitos das pessoas com diabetes a partir de 2013, assumi em todos os espaços a minha bioidentidade, e passei a frequentar grupos de diabéticos nas redes sociais.

Participei de alguns debates virtuais sobre as dificuldades de convívio com os sintomas de hiperglicemia e hipoglicemia - entre eles a irritação repentina e desmotivada - em que alguns participantes afirmavam que não seria possível se relacionar com pessoas sem a mesma condição, que não diabéticos não entenderiam as modificações de humor e o conflito que envolve o autocuidado cotidiano na convivência com a doença.

Em outra ocasião vi uma foto de um casal de namorados com diabetes, em que o rapaz aplicava insulina na namorada e a garota também lhe aplicava a injeção. Achei lindo o retrato por mostrar o companheirismo do casal até mesmo no momento de tomar a medicação, e não por identificá-los a uma bioidentidade patológica.

Dos anos 80 para cá, o número de doenças e de fármacos comercializados se expandiu. A Classificação Internacional de Doenças (CID), que até o fim da década de 80 listava as causas de mortalidade, a partir da sua décima revisão aprovada em 1989 passou a incluir doenças propriamente ditas e motivos de consulta, com atualização anual (2). Estudo concluído pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) informa que com o expressivo crescimento registrado nos últimos anos, o mercado de medicamentos no Brasil movimentou R$ 125,07 bilhões em 2014. A expectativa é de que em 2015, mesmo com a desaceleração econômica, o segmento encerre o ano com R$132,15 bilhões (3).

O segredo do sucesso da indústria farmacêutica no Brasil não é vender saúde, mas vender doenças, contando com o apoio do momento histórico em que vivemos no país, de luta pela consolidação do direito à saúde. Pessoas unidas em torno de um mesmo objetivo - receber a assistência do Estado para tratamento de determinada condição em comum - muitas vezes acabam se fechando em nichos patológicos, ideais para empresas que buscam direcionar a venda de seu produto, e não expandir a cidadania. E isso acontece quando nos aprisionamos em nossa bioidentidade patológica.

O apoio de pessoas que passam por situações parecidas com as nossas, não raro conflituosas no quotidiano, é muito importante, e potente quando nos ajuda a viver fora dos contornos da patologia. Há muitos grupos de redes sociais e blogs com pessoas que se apoiam no dia a dia, e que ajudam umas às outras a conquistar melhores condições de vida com saúde, ainda que convivendo com uma doença crônica. O problema é se esse encontro identitário de patologia se torna obrigatório.

Da mesma forma sutil com que o Poder Judiciário utiliza terminologia empresarial (com análises sobre "produtividade" e "balanço" de decisões judiciais) e com que relatórios de saúde são chamados de "produtos", também as pessoas estão sendo transformadas em propriedade diagnóstica do mercado farmacêutico. E é justamente contra esse avanço do Capital sobre nosso corpo, sobre nossa definição enquanto pessoa, é que devemos lutar, encontrando formas de apoio e assistência em saúde sem que nossa singularidade seja apagada.

Equilibrar nossa bioidentidade patológica, para que ela não se sobreponha a nós mesmos, contando com a ajuda das pessoas com quem nos relacionamos, talvez seja uma forma de lutar contra o aniquilamento de nossa subjetividade. No texto "Namorar uma diabética?" (4) Francisco narra seu namoro com Vanessa, que tem diabetes, afirmando que a doença não representa o indivíduo, e que o amor cura. O afeto é o que pauta a relação do casal, não a doença.

Voltando aos seriados, o tocante episódio "Scrogge" da série "Please Like Me" mostra como a relação familiar é mais importante que a bioidentidade patológica (bipolar) da personagem. A troca de vivências e de experiências entre mãe e o filho aparece durante uma longa conversa, que dura o capítulo inteiro. No início da série o protagonista pergunta ao psiquiatra se ele tem uma "mental mom", e durante o desenvolvimento da série essa visão vai sendo transformada. 



 

No seriado "Polseres Vermelles" um grupo de adolescentes internados em um hospital troca suas bioidentidades patológicas por tipos de personalidades. Assim, o que clinicamente seriam portadores de câncer, coma, síndrome de asperger, cardiopatia congênita e anorexia, passam a ser respectivamente o líder e o vice-líder, o imprescindível, o inteligente, o bonito e a garota.





A nossa bioidentidade patológica pode nos dar força para lutarmos pelo direito à saúde, pela cidadania, e não pelo simples acesso a medicamentos que transforma a saúde pública num mercado lucrativo para o setor farmacêutico. Mas não pode definir a forma como nos relacionamos - ou não nos relacionamos - com outras pessoas. A patologia não pode ser o foco das nossas vivências, que assim se assemelhariam a um prontuário médico. A nossa história deve ser marcada pelo que vivemos, e não pela patologia que sofremos. Nossa história deve ser de vida, não de doença.



Referências:

(1) Linha do tempo da AIDS - blog Boa Saúde, Bilbiomed

(2) CID-10 - Histórico das versões - DATASUS

(3) Estudo Mercado de Medicamentos no Brasil - IBPT Pharma

(4) Namorar uma diabética? - Francisco Rayol, blog Diabetes e Democracia

quarta-feira, 22 de julho de 2015

6ª edição do Caderno Direitos Humanos, Justiça e Participação Social

Já está disponível na versão virtual a 6ª edição do Caderno Direitos Humanos, Justiça e Participação Social, produzido pelas organizações que compõem a Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh).

A versão impressa do material foi lançada durante o Seminário Nacional "A democratização do Sistema de Justiça e as Reformas Estruturais que precisamos", realizado nos últimos dias 22 e 23 de junho.

Com o título ‘Entre retrocesso de direitos e reformas conservadoras na Justiça’, o caderno traz para o debate o papel do Judiciário em meio a um cenário político, social e econômico de intensa reação conservadora.

Nessa edição, são apresentados textos de representantes da Conectas Direitos Humanos, Geledés e Instituto da Mulher Negra, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Terra de Direitos, Ação Educativa, Observatório da Justiça Brasileira/UFMG, Inesc e Plataforma dos Movimentos Sociais da Reforma do Sistema Político, e Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia.

>> Acesse o material completo aqui.

Leia o editorial:

Entre retrocesso de direitos e reformas conservadoras na justiça

O contexto atual, de intensa reação conservadora, faz um alerta sobre os rumos que podem tomar as reformas que tratam das estruturas e funcionamento dos órgãos do sistema de justiça brasileiro. Temos acompanhado significativos retrocessos para os direitos humanos.

Apenas para exemplificar, só este ano foram aprovados pelo Congresso Nacional a privatização da natureza e dos conhecimentos tradicionais (PL 7735/2014); a desobrigação sobre a rotulagem de alimentos transgênicos (PL 4148/08); a polêmica manobra inconstitucional para a autorização do financiamento privado a partidos políticos (PEC 182/07); a tentativa de transferência para o Congresso da competência para titular os territórios indígenas (PEC 215/00); a ameaça da redução da idade penal (PEC 171/93); a precarização dos direitos trabalhistas pela terceirização, já aprovado na Câmara (PEC 4330/04).

Qual é o papel do sistema de justiça, em especial do Poder Judiciário, nesse cenário de supressão de direitos humanos? Apesar de cada vez mais chamado a resolver conflitos de interesses coletivos e sociais, as respostas que têm vindo do Judiciário não atendem aos anseios populares, o que aponta que é preciso transformar e democratizar a justiça.

Porém, é nesse cenário de supressão de direitos que, sem qualquer debate público, estão em andamento projetos que reforçam o caráter corporativo e de isolamento que mantêm o sistema de justiça como espaço de legitimação de um modelo de desenvolvimento que viola direitos humanos para garantir interesses de setores que detêm poder político e econômico no país.

Conhecer e debater essa dimensão da política de justiça e sua relação com os direitos humanos faz parte da missão de diversos segmentos populares, tais como das organizações que se reúnem na JusDh (Articulação Justiça e Direitos Humanos), das redes de advogadas e advogados populares, das associações da Defensoria, Advocacia, Ministério Público e Magistratura comprometidos com a democracia e os direitos humanos.

Mas é preciso avançar e a tarefa não é simples! Mobilizar a sociedade em torno da construção de estratégias dirigidas à democratização do sistema de justiça requer ações que englobam a desconstrução de suas rebuscadas linguagens jurídicas, a pesquisa e o aprofundamento do conhecimento sobre suas historicamente fechadas estruturas institucionais, a identificação e a incidência em temas específicos como a anunciada reforma da Lei Orgânica da Magistratura, dos processos de indicação de ministros(as) do Supremo Tribunal Federal, da implementação de ouvidorias externas e de políticas afirmativas nos concursos para as carreiras jurídicas, dentre outras.

Nesta edição, trazemos alguns desses assuntos com objetivo de contribuir nessa difícil e importante tarefa de produzir e difundir informações sobre o papel do sistema de justiça e a importância de lutarmos para sua democratização.
 
 
 

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Núcleo de apoio à solução de demandas contra planos de saúde do TJ-SP: desequilíbrio de forças

A saúde no Brasil é um direito social, conforme definido pela Constituição Federal em seu artigo 6º. Considerando o grande número populacional do país, uma das formas encontradas para garantir o acesso integral aos serviços de saúde foi a concessão da prestação desses serviços à iniciativa privada (artigo 199, CF). Assim, os planos de saúde deveriam funcionar de forma suplementar ao SUS, oferencendo atendimentos em saúde em auxílio ao sistema público, mediante contribuição dos beneficiários.

Mas na prática, os planos de saúde funcionam como qualquer outro serviço colocado no mercado de consumo, em que o poderio financeiro define o jogo de forças entre as pessoas envolvidas na relação. De forma mais simplificada: quem tem mais, pode mais.

Com o aumento do poder de compra dos brasileiros (1) nos últimos 15 anos, a procura pelos serviços privados de saúde também cresceu. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS (2), no ano 2000 havia 31,2 milhões de brasileiros beneficiários de planos de saúde, que neste ano de 2015 passaram para 50,8 milhões, ou seja, quase 20 milhões a mais de pessoas. Isso significa que as operadoras de planos de saúde conquistaram quase um milhão e meio de clientes a mais por ano.

De forma inversamente oposta ao aumento dos lucros das operadoras, no mesmo período a qualidade dos serviços passou por uma notável piora, acarretando maior procura do Judiciário pelos beneficiários afim de garantir que os serviços de saúde fossem prestados na forma e no momento adequados.

Alegando subsidiar os magistrados e demais operadores do Direito, e assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência suplementar à saúde, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Recomendação nº 36/2011 (3) que, entre outras coisas, sugere a criação de núcleos de apoio técnico que incluam em sua composição os planos de saúde.

Atendendo à recomendação do CNJ, em 13/04/15 o Tribunal de Justiça de São Paulo criou o Núcleo de Apoio Técnico e de Mediação - NAT (4), que emitirá pareceres sobre pedidos liminares nas ações distribuídas no Fórum João Mendes Júnior, formado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), pela Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge) e pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), entidades que representam operadoras de planos de saúde.

Além do óbvio conflito existente em um representante dos réus elaborar pareceres decidindo pedidos contrários aos seus interesses, o que poderia ser mitigado pela presença da ANS - se a agência reguladora, que em 2013 foi presidida durante alguns meses pelo advogado de planos de saúde Elano Figueiredo, protegesse com mais eficiência os direitos dos associados - o que mais ressalta o desequilíbrio de forças desse núcleo é a ausência de representantes dos usuários da assistência suplementar.

A participação social em decisões administrativas é ainda incipiente, e tornou-se mais presente no quotidiano dos brasileiros a partir de consultas públicas realizadas em larga escala pelo Ministério da Saúde para a incorporação de medicamentos ao SUS, e pela própria Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Mas a mesma ANS, quando da definição dos prazos máximos de atendimentos em 2011, antes de expedir a Resolução nº 259 pertinente ao tema, também consultou apenas as operadoras dos planos de saúde. Conforme se lê na reportagem sobre o início da vigência da norma, com perguntas e respostas sobre o tema: "14) Como foram definidos os prazos máximos para atendimento previsto na Resolução Normativa 259? (...) As operadoras indicaram os prazos ideais para o atendimento."

Da mesma forma que na definição dos prazos máximos de atendimentos pela ANS as operadoras indicaram o ideal (para elas, e não para os consumidores), também neste núcleo de apoio técnico do Tribunal de Justiça indicarão as soluções que lhes serão "ideais", em prejuízo, mais uma vez, dos beneficiários da saúde suplementar.

Mas este não será o primeiro caso em que o Poder Judiciário favorece a participação da parte mais forte para decidir a vida e a saúde dos cidadãos e dos jurisdicionados. Desde 2012 funciona no Fórum da Fazenda de São Paulo o setor de Triagem Farmacêutica no Juizado Especial da Fazenda Pública – Jefaz (6), que se por um lado oferece informações aos cidadãos sobre acesso a medicamentos na rede pública, também fornece informações aos magistrados para subsidiar pedidos judiciais de medicamentos e tratamentos de saúde. Da mesma forma que o NAT, o setor do JEFAZ é composto apenas por funcionários da Secretaria Estadual de Saúde, deixando de fora o Conselho Estadual de Saúde, que representa os usuários do SUS.

A solução mais plural e democrática, em todos esses casos, seria incluir na composição destes núcleos de apoio os órgãos de defesa dos cidadãos - no caso do NAT e da ANS, IDEC e PROCON, e no caso do JEFAZ, Conselho Estadual de Saúde - conferindo maior equilíbrio de forças para a elaboração de pareceres, com opiniões de representantes de ambas as partes no conflito - que neste caso representa também a disputa de forças entre o Capital e os trabalhadores.

No que se refere às demandas propriamente ditas contra os planos de saúde, a criação do NAT se oferece como solução de problema que não existe para os consumidores jurisdicionados, já que os processos que envolvem saúde tem tramitação prioritária no Tribunal de Justiça de São Paulo. Em alguns casos, as respostas aos pedidos liminares são proferidas apenas uma hora após a propositura da ação. Neste caso, oferecer um parecer em 24 horas - e postergar a concessão da liminar condicionando-a à sua elaboração - seria um retardo da solução, em contrariedade ao direito constitucional à celeridade processual (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal).

O problema portanto, não parece ser o número de processos contra planos de saúde no Estado, resolvidos com grande rapidez, mas o número de decisões favoráveis aos consumidores e contrárias aos interesses das operadoras, que com o NAT poderão retardar um pouco mais o atendimento aos beneficiários, ou até mesmo fornecer subsídios para que o magistrado reconheça como legítima recusa ilegal e imoral, como são todas as negativas de proteção à saúde dos cidadãos.

Com a configuração atual, o núlceo do Tribunal de Justiça de São Paulo é apoio para as operadoras de planos de saúde em detrimento dos direitos dos consumidores. É claro posicionamento em favor do mais forte na relação de consumo, é desequilíbrio de forças em prejuízo dos cidadãos e da democracia, e contra a saúde enquanto direito social.




Referências:

(1) IBGE- Uma análise das condições de vida da população brasileira - 29/11/2013

(2) ANS - dados e indicadores do setor - atualizado em 06/2015

(3) Recomendação nº 36, de 12 de julho de 2011, do Conselho Nacional de Justiça

(4) Tribunal de Justiça cria núcleo para mediar liminares nas questões que envolvem cobertura de planos de saúde

(5) Norma sobre garantia e tempos máximos de atendimento entra em vigor

(6) TJSP e Secretaria da Saúde do Estado firmam convênio para melhorar atendimento à população