Em novembro de 2014, após uma conversa com a Presidente da CONITEC (1) durante o 2º Encontro de Blogueiros e Ativistas em Saúde, comecei a refletir sobre a necessidade de dados para a criação de políticas públicas em saúde, incluindo a implementação de programas para a atenção às pessoas com diabetes.
A princípio atribui à indústria farmacêutica, aos institutos de pesquisa e às associações médicas a responsabilidade pela elaboração e busca desses dados (2). Mas considerando a diretriz constitucional do SUS de participação da comunidade na saúde (artigo 198, III, CF), comecei a questionar se nós usuários do SUS também não poderíamos contribuir para a coleta das informações necessárias ao aprimoramento das políticas necessárias à promoção, prevenção e recuperação da nossa saúde.
Fiz então uma breve análise dos processos judiciais dos meus clientes e percebi que a proporção da prevalência de diabetes tipo 1 e tipo 2 se invertia nos processos judiciais: o diabetes tipo 1 no Brasil corresponde a aproximadamente 10% dos casos, enquanto o tipo 2 atinge cerca de 90% dos portadores (3); nos processos dos meus clientes, 75% deles era do tipo 1, e 25% era do tipo 2. Uma pesquisa mais ampliada que confirmasse esses números poderia indicar a necessidade de inovações no tratamento de pessoas com diabetes tipo 1, pois são eles os que mais procuram a justiça para receber do SUS os medicamentos necessários à sua sobrevivência digna.
Comecei então a pensar em um projeto de pesquisa de mestrado sobre o assunto, abordando a terapêutica pública do diabetes relacionando-a aos processos judiciais de pedidos de medicamentos para tratamento da doença no Brasil. Mas logo percebi que meu interesse pelo controle social no SUS era tão grande quanto a minha vontade de buscar dados sobre o diabetes, o que exigia uma adaptação do projeto para incluir a participação da comunidade das pessoas com diabetes na elaboração das políticas públicas.
Para delimitar melhor o objeto da pesquisa, me inscrevi como aluna especial na disciplina de "Regionalização de Regulação das Redes de Atenção à Saúde" da Faculdade de Saúde Pública da USP, ministrada pela Profª. Marília Louvison. A partir do texto “Democracia, Poder Local e Inovação”, integrante do livro “Democracia e Inovação na Gestão Local de Saúde”, de Sônia Fleury, consegui fixar alguns parâmetros para o projeto, que já passou por inúmeras transformações desde a análise dos processos dos meus clientes em 2014.
Mas não consegui deixar de pensar que, sendo um projeto sobre diabetes e participação social, seria muito interessante se a comunidade de pessoas com diabetes pudesse também opinar (contribuindo de forma participativa) sobre os destinos a que pretendo levar essa pesquisa.
Desta forma, compartilho aqui (depois da imagem) a íntegra do texto produzido para a aula sobre democracia, poder local e inovação. Transcrevo aqui a parte final, que explica brevemente a ideia da pesquisa:
"Pensou-se inicialmente em coletar dados sobre os temas debatidos por associações de pacientes, blogueiros e ativistas (nas redes virtuais e nos territórios) nos últimos dez anos, e compará-los à evolução dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas de diabetes, para verificar se as demandas da comunidade diabética foram atendidas, ou seja, se a participação social direta resultou em alguma mudança em questão de implementação de política de saúde voltada a pessoas com diabetes. Mas é possível uma análise mais aproximada da democracia direta, a partir da ideia de poder local, coletando os dados relativamente a governos e participação social subnacionais, para comparar dois Estados (São Paulo e Piauí, por exemplo) ou duas cidades (São Paulo e Brasília, por exemplo) a partir das diferenças de seus protocolos regionais de tratamento do diabetes, relacionando-os aos temas debatidos por associações de pacientes, blogueiros e ativistas (nas redes virtuais e nos territórios) dessas regiões, tentando aferir a influência dos grupos sobre a política de saúde local para pessoas com diabetes, incluindo no debate a problematização trazido no início deste texto."
Ficarei muito feliz se a comunidade diabética, pessoas que convivem com portadores da doença (parentes e trabalhadores da saúde), e ainda outros pesquisadores, comentarem o post trazendo suas ideias sobre diabetes e participação social, para que possamos juntos buscar esses dados necessários ao aprimoramento dos cuidados das pessoas com diabetes pelo viés do SUS democrático e participativo.
Referências:
(1) Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS: http://conitec.gov.br/index.php/entenda-a-conitec-2
(2) Diabetes e inovações tecnológicas: políticas públicas dependem de números (?):http://diabetesedemocracia.blogspot.com.br/2014/11/diabetes-e-inovacoes-tecnologicas.html
(3) Tipos de Diabetes (página da Sociedade Brasileira de Diabetes): http://www.diabetes.org.br/para-o-publico/diabetes/tipos-de-diabetes
(4) Livro “Democracia e Inovação na Gestão Local de Saúde”, de Sônia Fleury: http://peep.ebape.fgv.br/sites/peep.ebape.fgv.br/files/file/DEMOCRACIA%20E%20INOVACAO%20NA%20GESTAO%20LOCAL%20DA%20SAUDE.pdf
Cidadania, democracia direta e inovações em saúde
De que forma as inovações são implementadas no sistema público de saúde brasileiro, no contexto de uma democracia representativa e direta com acesso desigual dos diferentes atores sociais à participação nas políticas públicas de saúde, considerando as disputas inerentes ao sistema de produção capitalista, em que direitos se contrapõem a produtos de consumo, o privado se interpõe ao público, e a relação de forças entre trabalho e capital dependem da intervenção do Estado, que não exerce apenas o papel de regulador dessas relações, mas também é responsável pela promoção, prevenção e recuperação em saúde? Qual a relação estabelecida entre Estado, cidadãos e empresas privadas a nível regional, nacional e global na política de saúde que, muitas vezes reproduz as desigualdades da democracia brasileira? Estes são os problemas trazidos para análise por Sônia Fleury em “Democracia, Poder Local e Inovação”, primeiro capítulo do livro “Democracia e Inovação na Gestão Local de Saúde”.
A publicação é fruto de uma pesquisa realizada entre 1996 e 2006, dividida em duas etapas: a primeira, nomeada de “Municipalização da Saúde e Poder Local no Brasil”, estudou a diversificação do perfil dos gestores municipais e a consequente inovação no desenho institucional e na dinâmica de funcionamento da gestão, em suas dimensões social (relação Estado-sociedade), gerencial (eficiência e produtividade) e assistencial (programas de atenção local); e a segunda, nomeada de “Municipalização da Saúde: inovação na gestão e democracia local no Brasil”, após análise comparativa de dados entre 1996 e 2006, verificou que houve uma redução das discrepâncias entre os setores social, gerencial e assistencial, acarretada pela redução de inovações no setor gerencial e avanço na inovação assistencial (considerando os investimentos na atenção básica e todas as transformações político-econômicas dessa década), identificando a gestão como um ponto crítico da descentralização da política de saúde.
Além dos resultados da análise em questão, o estudo se afigura ainda mais interessante quando se considera a autora do projeto, que foi militante da reforma sanitária e consultora da Assembleia Nacional Constituinte para redação do capítulo de Seguridade Social da Constituição Federal. Ou seja, a pesquisa sobre a inovação e deslocamento de poder na sociedade brasileira a partir do arcabouço jurídico-normativo sobre saúde da Constituição Federal foi realizada por quem esteve intimamente ligada a essas transformações do sistema de saúde no Brasil.
Na abordagem da relação entre democracia, poder local e inovação, Sônia Fleury parte dos fundamentos teóricos sobre democracia, passando pelos conceitos de governança e governabilidade, até chegar nas hipóteses pesquisadas, que relacionam o poder local e descentralização à inovação em saúde, estabelecendo ainda modelos de difusão das inovações.
As teorias filosófico-jurídico-econômicas são, na primeira parte do capítulo, o referencial da análise sobre a construção da democracia e da cidadania no Brasil, a partir do histórico nacional de desenvolvimento do capitalismo e das transformações que provocou nas relações baseadas no associativismo, no clientelismo e no corporativismo, com a descentralização do poder a partir dos movimentos municipalista e de reforma sanitária durante a transição político-democrática, e expansão da cidadania, que exigiu maior intervenção e atuação do Estado na garantia de acesso aos direitos sociais (em que se inclui o direito à saúde). Embora haja teorias sobre a construção da cidadania no Brasil que identifiquem uma inversão da ordem natural dos direitos como uma ameaça à governabilidade, Sônia Fleury aponta como ameaça real o paradoxo entre a cidadania formal e a extrema desigualdade de acesso à distribuição de riquezas e aos bens públicos no Brasil, como reflexo de uma dissociação entre o desenvolvimento capitalista e a democracia, que no estágio atual apresenta demandas de diversificadas origens e de maior participação e controle social sobre os atos administrativos, para conferir legitimidade ao exercício do poder representativo.
A inclusão de novos atores sociais locais veio acompanhada da ampliação de demandas, exigindo o estabelecimento de um novo desenho institucional face à incapacidade do Estado de atendê-las, o que ameaçaria a governabilidade, então traduzida como capacidade de manter coalizões políticas objetivando a estabilidade econômica atrelada à nova ordem mundial de reformas estruturais do Estado, privatizações e ajuste fiscal. Há um deslocamento da discussão da área política para a área técnico-administrativa, em que a preocupação com a governabilidade cede lugar à ideia de governança, centrada nos processos e mecanismos de gestão. As práticas patrimonialistas no Brasil na década de 90, ditadas por diretrizes de órgãos econômicos internacionais, impedem a expansão da cidadania, mantém as desigualdades, desvalorizam os serviços e os trabalhadores públicos, e despolitizam o debate, criando um ambiente desfavorável às políticas públicas asseguradoras dos direitos sociais conquistados com a democracia. Todavia, o dinamismo das transformações sociais ocorridas com a inclusão dos novos atores sociais no cenário político impõe a tomada de medidas para a consolidação da democracia, provocando a reorganização da economia nacional frente a mundial, considerando a integração social no projeto de desenvolvimento, através de redes de políticas públicas envolvendo a descentralização do processo decisório, permitindo o exercício de um poder plural e diversificado.
Embora os resultados da descentralização não sejam claros quanto ao fortalecimento da democracia e aumento da eficiência dos serviços públicos (justificativas também utilizadas para processos centralizadores), é possível relacioná-la ao desenvolvimento local quando confere ao governo subnacional autonomia, entendida como a capacidade de formular políticas e executá-las no âmbito local, e ainda influenciar a agenda nacional. Portanto, os benefícios da descentralização, em termos de promoção do welfare state e de limitação da concentração de poder, depende do contexto cultural, institucional e legal do país. No Brasil, apesar das dificuldades de implementação impostas pela política fiscal centralizadora, em algumas regiões a descentralização da gestão promoveu a ampliação da participação social, através da articulação dos atores sociais locais em uma rede de cooperação, criando um ambiente propício às inovações, que não se restringem à seara dos serviços públicos, mas se espraiam para as relações sociais. Assim, o fortalecimento da democracia não é originária da descentralização isoladamente, mas da complementar modificação da relação governo central-local-sociedade, com ampliação da cidadania.
Relacionando as reflexões trazidas pelo texto de Sônia Fleury, com críticas à democracia representativa por sua fragilidade na inclusão dos interesses dos diferentes atores sociais na pauta nacional de saúde, e que ao mesmo tempo credita à democracia direta (ainda que não utilize o termo), através da participação social, maiores chances de promoção da cidadania enquanto inclusão de interesses diversificados nas decisões sobre políticas públicas, é possível repensar a abordagem do projeto de pesquisa sobre os eventuais resultados da militância (dos grupos reunidos em associativismo em torno do tratamento de pessoas com diabetes no Brasil) na política nacional de atenção ao diabetes.
Pensou-se inicialmente em coletar dados sobre os temas debatidos por associações de pacientes, blogueiros e ativistas (nas redes virtuais e nos territórios) nos últimos dez anos, e compará-los à evolução dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas de diabetes, para verificar se as demandas da comunidade diabética foram atendidas, ou seja, se a participação social direta resultou em alguma mudança em questão de implementação de política de saúde voltada a pessoas com diabetes. Mas é possível uma análise mais aproximada da democracia direta, a partir da ideia de poder local, coletando os dados relativamente a governos e participação social subnacionais, para comparar dois Estados (São Paulo e Piauí, por exemplo) ou duas cidades (São Paulo e Brasília, por exemplo) a partir das diferenças de seus protocolos regionais de tratamento do diabetes, relacionando-os aos temas debatidos por associações de pacientes, blogueiros e ativistas (nas redes virtuais e nos territórios) dessas regiões, tentando aferir a influência dos grupos sobre a política de saúde local para pessoas com diabetes, incluindo no debate a problematização trazido no início deste texto.
Débora Aligieri
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