domingo, 12 de agosto de 2018

Diabetes na "Porta dos Fundos": a relevância da hipoglicemia e o humor irrelevante

No último dia 09/08/18, um vídeo do portal humorístico "Porta dos Fundos" satirizando celebridades do YouTube que fazem qualquer coisa pra atrair a atenção do público gerou polêmica nas redes sociais. Na esquete "Youtuber" um rapaz executa o desafio de tomar insulina para experimentar os efeitos do medicamento, sugerindo ser possível a aplicação em colegas de escola. O vídeo termina com o garoto, interpretado pelo ator Gregorio Duvivier, desmaiado (ou morto, como preferir o espectador) após uma crise hipoglicêmica grave, não sem antes anunciar que no próximo episódio cortaria a perna para mostrar como pessoas com neuropatia diabética tem seus membros amputados.


A sátira não foi bem recebida na comunidade profissional médica e de pessoas com diabetes: notas de repúdio foram publicadas pela Sociedade Brasileira de Diabetes, que ressaltou a exclusão social dos portadores da doença em função de preconceitos como os disseminados pelo vídeo, e pela Associação de Diabetes Juvenil, que manifestou preocupação com a disseminação de informações errôneas sobre um problema grave de saúde pública como o diabetes. Ainda, uma carta subscrita por 36 blogueiros e ativistas de diabetes foi espalhada pelas redes sociais afirmando o prejuízo causado pelo vídeo ao trabalho desenvolvido para compartilhar informações e conhecimentos sobre os cuidados e experiências de convívio com a condição para a conquista da autonomia e da saúde dos pacientes que lutam diariamente em defesa de seus direitos e por uma vida melhor.







O vídeo em si é como outro qualquer do Porta dos Fundos, com uma abordagem rasteira e sem graça de um assunto sério, típica de caçadores de polêmicas sem capacidade de criar piadas realmente engraçadas e inteligentes. Mas trouxe à tona uma questão importante para portadores e cuidadores de pessoas com diabetes, muitas vezes considerada menos relevante nas discussões clínicas e nas avaliações de políticas públicas de saúde: a hipoglicemia como fator determinante da qualidade de vida das pessoas com diabetes.

Nos meus 32 anos de convívio com o diabetes, boa parte dos profissionais de saúde com que me tratei, tanto na rede privada quanto na rede pública de saúde, direcionava a construção do cuidado para evitar a elevação permanente da glicemia, baseando-se nos resultados do exame de hemoglobina glicada (aferição da média glicêmica dos últimos 3 meses), "padrão ouro", considerado como o desfecho mais importante na avaliação de tecnologias em saúde para pessoas com diabetes. De fato, níveis glicêmicos constantemente elevados colocam em risco a vida e a saúde de quem tem diabetes e podem provocar o surgimento de inúmeras complicações micro e macro vasculares, e afetar olhos, rins, membros, coração e outros órgãos do portador da doença. Mas na vida prática cotidiana de quem tem diabetes, o que atrapalha mesmo o desenvolvimento regular das nossas atividades é a hipoglicemia, em função de sintomas como suores frios, tremores, tontura, fraqueza, irritação e dificuldades cognitivas.

Certa vez um amigo médico me questionou pois, enquanto os colegas de profissão ressaltavam os riscos da hiperglicemia, como ele também aprendera na faculdade de medicina ao estudar diabetes, eu só falava em hipoglicemia. Respondi a ele brincando que, no cuidado em diabetes, hiperglicemia é preocupação de endocrinologista, enquanto a preocupação do paciente e de quem convive com ele é a hipoglicemia. O certo mesmo é que elevação e queda da glicemia preocupam tanto médicos quanto portadores de diabetes, mas talvez haja uma inversão (ou equalização) de relevância a partir da experiência prática com a doença e seus sintomas característicos.


Os percalços por que passam as pessoas com diabetes em função das quedas glicêmicas já foi há muito tempo compreendida pela indústria farmacêutica. Basta observar as ofertas de tecnologias para o cuidado em diabetes, praticamente todos os novos produtos são vendidos no mercado sob a promessa de redução do número de hipoglicemias, ou seja, as farmacêuticas sabem muito bem o que seus consumidores consideram relevante para conquistar qualidade de vida.

E o SUS? Em 2016, em relatório preliminar submetido a consulta pública, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (CONITEC) do Ministério da Saúde considerou a hipoglicemia como desfecho menor ao avaliar a inclusão de análogos de ação rápida para tratamento de diabetes tipo 1 pelo sistema público de saúde. Após as contribuições da sociedade (a maior parte delas de pacientes e cuidadores) relatando os inúmeros problemas com a hipoglicemia bem como a redução dos episódios com o uso da tecnologia analisada, a despeito das evidências científicas não indicarem redução dos níveis de hemoglobina glicada, os análogos de ação rápida foram incorporados ao SUS. Na avaliação seguinte para estudo da oferta de tratamento com bomba de insulina pelo SUS, a hipoglicemia apareceu no relatório da CONITEC como um desfecho tão relevante quanto a hemoglobina glicada.

Isso mostra a importância de se observar as experiências práticas dos usuários no convívio com o processo saúde/doença, e como a escuta dos saberes desenvolvidas por quem vive com diabetes como legítimos conhecimentos pode contribuir para a construção de uma política pública mais adequada às necessidades de saúde desta população. Mas na sociedade do conhecimento científico, que valoriza apenas os saberes técnicos, a importância da hipoglicemia na vida das pessoas com diabetes só se fez presente pela "porta dos fundos", após muita luta dos pacientes pelo reconhecimento da legitimidade de seus conhecimentos práticos, que mostram como é problemático viver com quedas glicêmicas constantes.

Quanto ao vídeo do Porta dos Fundos, apesar dos milhões de seguidores do canal, é uma produção totalmente irrelevante no cenário cultural e social brasileiro. 


Em tempo: apesar dos análogos de ação rápida terem sido incorporados ao SUS em fevereiro de 2017, ultrapassado o prazo de 180 dias para oferta na rede pública de saúde (artigo 25, do Decreto nº 7.646/2011) há um ano, os portadores de diabetes tipo 1 ainda não estão recebendo o medicamento pelo SUS.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Militantes da saúde se reúnem para discutir estratégias de luta contra o golpe e em defesa do SUS


Em 12/07/18, militantes da saúde se reuniram na Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) para debater a situação da saúde após o golpe a partir das experiências de cada um dos presentes, contando com trabalhadores e usuários, integrantes de sindicatos (SinPsi e Sindisaude/SP), de partidos políticos (setorial de saúde estadual e municipal do PT, PCO e PSOL), conselheiros de saúde e Movimento Popular de Saúde do Centro.

A reunião teve dois momentos: num primeiro discutimos as principais pautas de saúde, as políticas afetadas pelo golpe, em que ficou bastante marcado o avanço da lógica neoliberal sobre a saúde pública e seus efeitos desqualificadores do cuidado em saúde, e a necessidade de uma comunicação com os movimentos de base para conscientização da importância do SUS, para explicar o que significa a Emenda Constitucional 95 (teto de investimentos federais em saúde e educação) em linguagem acessível, e para ouvir as necessidades em saúde das pessoas; num segundo momento debatemos propostas de ação em defesa do SUS e da saúde pública para serem apresentadas na Conferência Nacional de Luta Contra o Golpe. Foi proposta a realização de um ato unificado com outros setores contra a EC 95, com panfletagem sobre o que ela representa na prática para a política de saúde, e inclusão de conteúdos sobre saúde no jornal dos Comitês de Luta Contra o Golpe.

Foram apresentadas ainda outras ideias de ação que demandam mais debates, então marcamos um segundo encontro para o dia 13/09/18, às 19h, na APSP, para discutir essas outras propostas, entre elas a articulação com conselhos e movimentos sociais e culturais regionais de debates sobre a EC 95 previamente ao ato unificado, e a formação de um Comitê da Saúde Contra o Golpe de SP.

Então se você é militante, usuário, trabalhador, gestor, pesquisador do SUS, se você acredita que saúde não é mercadoria mas direito de todos, venha para esta nova reunião conosco, para debatermos juntos estratégias de luta contra o golpe de Estado e de defesa da saúde pública no Brasil!

Data: 13/09/18

Horário: 19h

Local: Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) - Rua Cardeal Arcoverde, 1749, cj. 78, bloco B, Pinheiros, São Paulo/SP


Confirme presença no Segundo Encontro da Saúde Contra o Golpe: https://www.facebook.com/events/2157454484502810/



Tese política para a defesa da saúde pública como direito no Brasil e em defesa do SUS, apresentada na Conferência Nacional Aberta de Luta Contra o Golpe, ocorrida em São Paulo nos dias 21 e 22 de julho

1. Os efeitos do golpe na saúde e na vida dos brasileiros

A sustentabilidade do SUS enfrenta sérios riscos com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, que congela os investimentos federais em saúde e educação pelos próximos 20 anos. Assistimos ao avanço do modelo privado de atenção em saúde na organização do sistema e nas práticas de saúde. No Município de São Paulo, o projeto de reestruturação da saúde da gestão Doria/Covas (PSDB) é apenas uma amostra de um projeto maior de redução do SUS, como forma de criação de mercado para as empresas e serviços do setor privado da saúde. O projeto dos planos “acessíveis” do Ministério da Saúde, que visa transformar nosso sistema universal num sistema de saúde para pobres e vulneráveis apenas, seguindo o péssimo modelo de sistema de saúde americano, resulta da pressão da Organização Mundial da Saúde (OMS) pela implementação da cobertura universal de saúde (CUS), diferente de um sistema universal de saúde como direito. Desde o golpe houve mudanças profundas nas políticas de atenção básica, de saúde mental, e de álcool e drogas. A organização e execução dos serviços de saúde vem se efetivando sob a lógica capitalista produtivista, e não sob a lógica do cuidado em saúde. A terceirização dos serviços de saúde amplia-se de forma desenfreada através da contratação de Organizações Sociais de Saúde (OSS), que abocanham 52% do orçamento público da saúde no Município de São Paulo e são responsáveis por 68% dos serviços públicos de saúde prestados na cidade (apenas 32% dos serviços são prestados pelos servidores da administração direta), como estratégia de privatização velada do sistema público de saúde, com o amparo da Lei de Responsabilidade Fiscal como barreira jurídica à ampliação e melhoria dos quadros da administração direta e de um SUS 100% público capaz de atender às necessidades em saúde da população. Essa privatização velada causa inúmeros prejuízos ao erário (caso da OSS IABAS, que deixou um enorme rombo financeiro no Rio de Janeiro, e CPI das OSS em andamento na Assembleia Legislativa de São Paulo) e à saúde da população, bem como aos trabalhadores em função da precariedade da relação de trabalho. O avanço da política neoliberal biocapitalista conservadora e imperialista mostra-se evidente nas privatizações dos serviços e empresas públicas, com reflexos nas políticas de saúde, através da permissão legal da presença do capital estrangeiro na saúde. Estamos assistindo a uma mudança da concepção de saúde a partir da medicalização crescente. Equipes de Estratégia Saúde da Família foram descredenciadas no Brasil inteiro como resultado da ausência de diálogo e de cogestão dos serviços, negando o modelo responsável pelo sucesso do SUS.


2. Saúde não é mercadoria, devemos lutar contra a privatização e liquidação do SUS

Há uma necessidade premente de fortalecimento da participação social e de luta contra as medidas que a fragilizam, impondo-se o apoio à realização da 16ª Conferência Nacional de Saúde em 2019. É necessária a luta em defesa do SUS dentro e fora da máquina, através da participação social institucional e não institucional, como forma de promover o diálogo entre os conselhos e a sociedade numa luta conjunta, lembrando que os conselhos de saúde constituem apenas um dentro muitos instrumentos democráticos de luta do SUS. É necessário permanecer lutando em defesa do SUS público, gratuito, universal, integral e equânime. Para tanto, precisamos envolver toda a população nesta luta, por meio de comunicação clara e objetiva sobre os prejuízos acarretados pelo golpe à saúde dos brasileiros através de linguagem acessível, menos técnica e acadêmica, pois as pessoas não entendem direito o que é o SUS e o que ele representa enquanto um sistema de direitos, é importante explicar que os ataques ao SUS são um ataque ao Estado e à vida das pessoas. É necessário reavivar a memória de lutas da saúde, pois a história do SUS é uma história de luta da população, da busca pelo atendimento de suas necessidades, através da retomada do modelo de conselhos populares, pois as pessoas se movimentam por necessidade. Devemos, portanto, escutar as necessidades reais das pessoas.


3. Ações concretas em defesa da saúde como direito universal no Brasil

A partir dessas considerações, podemos pensar em ações concretas em defesa do SUS e da saúde pública: 1. organização de cursos e debates sobre os efeitos do golpe na saúde; 2. inclusão de conteúdos relacionados à saúde no Jornal dos Comitês de Luta Contra o Golpe; 3. ato unificado com outros setores contra a EC 95, em apoio às mobilizações do Conselho Nacional de Saúde, entre elas a coleta de assinaturas em favor da declaração da inconstitucionalidade da medida pelo STF, que julga ação judicial proposta para este fim, retomando a luta em defesa do “Saúde + 10” (Projeto de Lei de Iniciativa Popular nº 321/2013, de destinação de 10% das Receitas Correntes Brutas da União para a saúde, parado na Câmara dos Deputados); 4. realização de debates sobre o golpe nas regiões, nos Conselhos Gestores de Unidades de Saúde ou em outros equipamentos públicos (de saúde ou não) através da interlocução com outros setores e movimentos sociais; 5. identificação das forças e dos movimentos em cada região para organização conjunta dos debates sobre os efeitos do golpe na saúde; 6. formação de Comitês da Saúde Contra o Golpe.

Para discussão nesta Conferência Nacional Aberta de Luta Contra o Golpe, propõe-se a organização de ato unificado contra a EC 95, com panfletagem sobre o que ela representa na prática para a política de saúde e sobre a importância do SUS público e universal, e inclusão de conteúdos sobre saúde no Jornal dos Comitês de Luta Contra o Golpe.


Discutiram esta tese trabalhadores e usuários do SUS, integrantes de sindicatos, de partidos políticos, de movimentos sociais, conselheiros de saúde e estudantes da área de saúde presentes na Conferência da Saúde Contra o Golpe, realizada em São Paulo no dia 12/07/18, como atividade setorial preparatória para a Conferência Nacional Aberta de Luta Contra o Golpe.
 



Assista aos debates do primeiro dia da Conferência Nacional Aberta de Luta Contra o Golpe: