Car@s Amig@s da blogosfera.
Compartilho aqui com vocês algumas reflexões a partir da leitura do último capítulo do livro “História da sexualidade 1: A vontade de saber” de Michel Foucault, para a disciplina de “Estudos de Biopolítica e Saúde”, da pós-graduação da Faculdade de Medicina da USP, sob coordenação dos Professores Ricardo Rodrigues Teixeira e Rogério da Costa Santos.
Na verdade, este é um convite para a continuação e ampliação do diálogo na rede, através de novos comentários e reflexões que venham se somar a esses que publico agora.
E começo questionando: quando nos interrogamos “qual o sentido da vida”, não estaríamos na verdade tentando identificar as forças que operam sobre a nossa vida e que nos conduzem pelos caminhos que seguimos?
imagem de capa do livro “O Leviatã” de Thomas Hobbes (com a ideia de poder como exercício da soberania, contestada por Foucault), trazida em aula pelo Prof. Ricardo
Direito de morte e poder sobre a vida – reflexões
Em “Direito de morte e poder sobre a vida”, último capítulo do livro “História da sexualidade 1: A vontade de saber”, Foucault analisa os diferentes tipos de poder exercidos na história e sua relação com o desenvolvimento de mecanismos ou tecnologias de governo da vida.
O primeiro tipo identificado por Foucault é o poder sobre a morte, o poder do soberano, como um poder de dispor da vida dos súditos, simbolizado pelo gládio (espada de guerra). O soberano possuía legitimidade para decidir sobre a morte dos súditos. O soberano era titular do “direito de apreensão” (confisco como mecanismo de poder), de se apoderar da vida dos súditos para depois suprimi-la, como referido expressamente por Foucault (fls.129 do pdf). Numa analogia com o conceito atual de capacidade jurídica, os súditos poderiam ser considerados como “menores” em função da ausência de capacidade de decisão sobre a própria vida. Sob essa premissa, o suicídio seria uma forma de emancipação. Mas mesmo podendo decidir a morte dos súditos, o soberano não os conduzia diretamente na forma de levar a vida.
A partir da época clássica, o confisco da vida deixa de ser o principal mecanismo de poder, cedendo espaço à gestão da vida em si como foco do exercício de poder em defesa da sobrevivência de determinada população. A intervenção direta na conduta humana passa a ser o principal mecanismo de poder. No lugar da espada do soberano a guerra em nome do Estado, consubstanciada num poder de morte ampliado, plural, mas em nome da sobrevivência de um povo a partir do extermínio ou dominação de outro. Neste caso, o suicídio seria também uma forma de emancipação, não em relação ao soberano, mas ao controle do Estado e da sociedade. Uma forma de resistência ao poder controlador através da eliminação do objeto de intervenção do poder: a própria vida.
À morte então se opõe a proteção das vidas, e somente invocando esta razão é possível legitimar a decisão de causar a morte de alguém, como um “perigo biológico para os outros” como menciona Foucault (fls. 131 do pdf). Não seria exatamente esse o fundamento para isolar do convívio com a sociedade os condenados pela Justiça Penal, os “loucos”, os adictos, porque representariam um perigo para a vida dos outros? Um perigo para a “normalidade” da vida em sociedade? Ainda os pobres nas regiões periféricas das cidades, como forma de impedir-lhes a ocupação dos espaços centrais e estratégicos na condução do funcionamento da sociedade?
Foucault então identifica o segundo tipo de poder, o poder sobre a vida, na forma de disciplinas do corpo e de regulação da população, ambas voltadas à gestão da vida. Ambas instituem a vida como “produto” do poder. E no sistema capitalista, o “produto-vida” (individual e coletivo) tem um valor diferenciado conforme lhe são atribuídos mais ou menos investimentos sobre o corpo vivo. O controle assim é exercido através da depreciação das vidas desconformes ao modelo capitalista, que justifica a atuação das forças que sustentam os processos econômicos bem como a segregação e hierarquização social (fls. 133 do pdf).
O biopoder é ativado a partir do momento em que a subsistência como possibilidade de vida para além do atendimento das necessidades básicas e defesa contra os riscos biológicos (fome e peste) é possível ser garantida por tecnologias de produção de alimentos e de estudo da vida. O saber sobre a vida é assim localizado como poder sobre a vida, como uma tecnologia política.
Ao afirmar que “o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão” (fls. 135 do pdf), estaria Foucault questionando ou refutando a ideia de livre arbítrio? Qual a real autonomia do homem moderno na condução de sua vida? A consciência dos mecanismos e técnicas de poder em ação na condução da vida podem produzir gradações entre a autonomia limitada e a total escravidão? E se a consciência se desenvolve a partir da experiência prática, estando o homem numa contínua prática controlada, como escapar a esse controle, ou seja, conquistar sua autonomia na condução da vida?
Na sociedade do controle o direito exerce um papel fundamental como poder regulador da vida e de suas possibilidades. As normas jurídicas se constituem como ferramentas do poder político sobre a vida, objeto de normalização, através da reprodução normativa em outras searas. É assim que as pessoas aceitam e consideram natural viver uma vida regrada. Mas como foco do poder político, a vida se sobrepõe e resiste ao direito como norma de proteção do Estado, para transformar o direito em ferramenta de defesa da própria vida, para proteção das necessidades fundamentais do homem e na luta pela plenitude existencial (fls. 137 do pdf). Mas de que vidas estamos falando? Quais as reais possibilidades de resistência ao poder controlador e de luta em defesa de uma vida plena tem as pessoas em situação de vulnerabilidade social, cuja vida se resume à busca pelo atendimento das suas necessidades básicas e defesa contra os riscos biológicos (fome e doenças)?
Como consequência lógica do poder sobre a vida, o sexo se tornou alvo central das intervenções políticas, pela possibilidade de exercício concomitante das duas formas de poder sobre a vida: disciplina do corpo e regulação da população. Na sociedade do sexo, a sexualidade é objeto do poder político visando o controle da vida, do corpo individual e social. Nas palavras de Foucuault “O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie” (fls. 138 do pdf). Não é à toa que as disputas envolvendo o sexo costumam ser tão acirradas, como ocorre nos debates sobre o direito (a norma é amiga íntima da sexualidade!) ao aborto.
A partir dessa ideia, é possível entender também por que a mulher e o corpo da mulher se constituíram ao longo do tempo aparentemente como objeto de desejo, sendo, em realidade, objeto estratégico de poder: é sobre o corpo da mulher que as disciplinas e as regulamentações operam de maneira simultânea no controle do corpo individual e social. Todas as quatro linhas de ataque de controle político do sexo apontadas por Foucault (sexualização infantil, histerização das mulheres, controle de natalidade e psiquiatrização das perversões) envolvem a vida das mulheres, ainda que indiretamente no papel de mães.
A substituição (com justaposições, interações e ecos de uma em relação à outra) da sociedade da sanguinidade, que tem as relações de sanguinidade como símbolo, pela sociedade do sexo, que tem a vida como objeto e alvo de intervenção política, foi promovida pelo desenvolvimento dessas novas técnicas de poder sobre a vida. A sexualidade é instrumentalizada para controlar a vida, possuindo efeito com valor de sentido (fls. 140 do pdf). Quando nos questionamos “qual o sentido da vida”, não estaríamos na verdade tentando identificar as forças que operam sobre a nossa vida e que nos conduzem pelos caminhos que seguimos? O filme “O sentido da vida” (em inglês “The meaning of life”) do grupo inglês Monty Python aborda essa questão de forma bastante pitoresca:
A preocupação com a perfeição da espécie, traço característico das ideologias eugenistas, é um retrato da passagem da sociedade da sanguinidade para a sociedade do sexo. Mas a ideia de sanguinidade é retomada na formação do racismo em interação com a sexualidade, com intervenções sobre a vida e o corpo individual e social fundamentadas na pureza do sangue, visando o triunfo da raça. Foucault cita as práticas nazistas de Hitler como o maior massacre da história da humanidade, mas a escravidão e tráfico negreiro poderiam se igualar ou até mesmo superar o suplício das vítimas do nazismo. A diferença é que os negros africanos foram escravizados na condição de propriedade dos senhores – submetidos, portanto, ao poder soberano de morte – e após a condenação jurídica da escravatura foram alçados à condição de raça inferior na sociedade do sexo. Sofrem, em fases diferentes da história, os efeitos do poder sobre a morte e a vida.
Como analisar o sexo em si na construção da sexualidade como dispositivo de poder político sobre a vida? O sexo ganhou teoria e características próprias – correspondentes a normas e a saberes – transformou-se em referencial, parâmetro de classificação das condutas humanas. Como diz Foucault, “o sexo pôde, portanto, funcionar como significante único e significado universal” (fls. 146 do pdf). Ponto de referência na constituição de sujeitos. O desejo do sexo funciona assim como o grilhão que nos aprisiona ao dispositivo da sexualidade, que nos constitui como assujeitados ao biopoder. A biopotência, a resistência ou contra-ataque ao dispositivo da sexualidade, deve partir dos corpos e dos prazeres.
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