domingo, 27 de maio de 2018

Qual a relação entre a prisão do dono da Dolly, o preço das insulinas e o monopólio comercial?

No dia 10 de maio o dono da empresa brasileira de refrigerantes Dolly foi preso sob a acusação de fraude fiscal, por demitir e recontratar funcionários, manobra legal que vem sendo amplamente utilizada por inúmeras empresas após a reforma trabalhista. Na ocasião de sua prisão, o empresário Laerte Codonho segurava um cartaz dizendo "preso pela Coca-Cola", que exerce o monopólio mundial do comércio de refrigerantes. Codonho há muito tempo denuncia práticas de concorrência desleal da Coca-Cola, e já fez campanhas publicitárias ressaltando a Dolly como uma produção nacional que disputa o mercado de bebidas com empresas estrangeiras. Mas o que tudo isso tem a ver com as pessoas com diabetes?

Em 1986, quando então eu contava com 09 anos de idade, fui diagnosticada com diabetes tipo 1. Nunca fui muito fã de refrigerantes, mas o fato é que nessa idade e naquela época, em todas as festinhas de aniversários de amigos e demais comemorações, era esta a principal - senão a única - opção de bebida para crianças. Sucos naturais e sem açúcar não integravam o cardápio dos eventos festivos.

Como não havia refrigerantes sem açúcar à disposição no mercado brasileiro, meu endocrinologista dizia para eu optar pela água com gás caso sentisse muita vontade de tomar refrigerante, conselho que eu desprezava solenemente por conhecer as grandes diferenças entre uma bebida e outra.

Algum tempo depois do meu diagnóstico, o primeiro refrigerante sem açúcar entrou no mercado brasileiro, era o nacional "Diet Dolly". Até hoje me lembro da satisfação em ter uma opção de bebida nas festinhas, que não provocava mal-estar físico em função da elevação glicêmica, ou mal-estar social pela necessidade de justificar o impedimento de beber refrigerante doce por ser portadora de diabetes. Somente depois do lançamento do Diet Dolly é que a Diet Coke começou a ser comercializada no Brasil, configurando a disputa do mercado de refrigerantes dietéticos entre duas empresas, uma nacional e outra internacional.

Na época, o SUS estava ainda sendo criado e organizado, e as pessoas com diabetes não eram amparadas por uma política de assistência farmacêutica gratuita (o que só aconteceu depois da edição da Lei nº 11.347/2006 e da Portaria nº 2.583/2007 do Ministério da Saúde), mas a insulina era produzida no Brasil pela empresa nacional Biobrás, vendida pelo governo Fernando Henrique Cardoso nos anos 90 para a dinamarquesa Novo Nordisk que, junto com a Eli Lilly e Sanofi-Aventis, exerce o monopólio mundial da produção do medicamento.

Desde novembro de 2016, a Associação Americana de Diabetes (ADA - American Diabetes Association) vem fazendo uma campanha em prol da redução dos preços das insulinas, questionando a falta de transparência das produtoras na estipulação dos preços do medicamento. Trabalhos de uma comissão de investigação sobre o assunto do senado americano concluíram que as farmacêuticas estão aumentando o preço das insulinas sem existir uma correlação entre os custos de produção e de taxação (leia sobre o assunto nestes links, em inglês: http://www.diabetes.org/newsroom/press-releases/2018/insulin-affordability-white-paper-release.html e https://www.chaindrugreview.com/pcma-ada-white-paper-confirms-drugmakers-set-raise-insulin-prices/). Ou seja, os altos valores das insulinas em todo o mundo não são resultado dos impostos ou das leis de proteção dos trabalhadores aplicados pelos países, mas do monopólio do mercado pelas farmacêuticas. De forma simplificada, as empresas cobram o quanto querem dos consumidores (incluindo os Estados) porque são as únicas produtoras em atividade no mercado.

No início deste ano, beneficiários de ordens judiciais de fornecimento das insulinas fabricadas pela Novo Nordisk de São Paulo deixaram de receber o medicamento em função de uma queda de braço entre a Secretaria do Estado da Saúde e a empresa que, através de estratégias legais (não comparecimento ao pregão com preço fixo), pretendia obrigar o Estado a pagar um valor maior que o praticado no mercado, justamente por saber da obrigatoriedade de aquisição em função dos processos judiciais. E parece que conseguiu.


Mensagens de emails trocadas com a equipe de mídias da SES-SP


Voltando para a prisão do dono da Dolly, único perseguido em função de um expediente (abominável, é certo!) utilizado por inúmeros empresários com a benção da reformada (melhor seria dizer deformada) legislação trabalhista, o enfraquecimento da marca nacional no mercado de refrigerantes só tem uma beneficiária, a Coca-Cola, que consolidando o monopólio da venda da bebida aos brasileiros poderá também exigir o preço que quiser dos consumidores, muitos deles pessoas com diabetes. 

Refrigerantes não são produtos assim tão caros, nem benéficos à saúde. Mas as insulinas são medicamentos essenciais à sobrevvivência de muitas pessoas com diabetes. O monopólio do mercado pelos grupos empresariais imperialistas internacionais prejudica o acesso das pessoas com e sem diabetes às opções de tratamento, e sobrecarrega o orçamento dos Estados que garantem a saúde como direito universal, como é o caso do Brasil.

A militância em diabetes no Brasil tradicionalmente busca assegurar direitos perante o Estado, mas raramente atua em face da indústria farmacêutica. Precisamos começar a debater as práticas das empresas fabricantes de medicamentos e insumos de diabetes, e lutar contra os preços abusivos desses produtos.


Para saber mais sobre a relação entre a prisão do dono da Dolly e o imperialismo: https://www.causaoperaria.org.br/caso-dolly-para-golpistas-brasil-deve-se-tornar-colonia-absoluta-do-imperialismo/


Observação: agradeço a contribuição da companheira Sheila Vasconcellos (do blog "Histórias de Hipoglicemia", da fanpage "Histórias de uma Diabética" e da revista "Em Diabetes") com o compartilhamento da notícia sobre os trabalhos da ADA junto ao senado americano.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Defeitos de glicosímetros não serão analisados na consulta pública da Prefeitura de São Paulo

Em 08.05.18 foi publicado no Diário Oficial do Município de São Paulo a abertura de consulta pública referente ao processo licitatório para fornecimento de tiras reagentes para monitorização da glicose e de glicosímetro correspondente. Como uma boa parte dos aparelhos distribuídos pela Prefeitura desde novembro de 2017 apresentaram defeito de acurácia, conforme denunciado pelos usuários nas redes sociais, a militância se alvoroçou, acreditando tratar-se de uma consulta pública para recebimento de experiências com glicosímetros, como uma resposta da gestão municipal às reclamações dos usuários.




Mas sabendo que o diálogo e o atendimento às demandas da sociedade não são exatamente a marca da gestão Doria/Covas, e percebendo algumas incongruências nessa consulta pública, relatadas no post "Consulta pública de glicosímetros: o cavalo de Troia da Prefeitura para as pessoas com diabetes de São Paulo", questionei diretamente a Prefeitura de São Paulo por twitter e por email, solicitando os seguintes esclarecimentos:









Em algumas horas a Prefeitura do Município de São Paulo respondeu parte dos meus questionamentos. Por email, a funcionária da PMSP Meire Freitas informou que "As Consultas Públicas dentro do âmbito deste município são regidos pelo Decreto Municipal 48.042/2006. Para os casos em que o valor estimado para aquisição de bens ou da execução de um serviço ultrapasse R$12.000.000,00, ou pela pertinência e complexidade do objeto. Neste caso, está sendo feita a consulta pública pelo valor do objeto. Para tanto, todos os atos da consulta pública seguirão os ditames deste Decreto."



A norma mencionada (Decreto Municipal n º 48.042/2006) institui a consulta pública nas licitações realizadas pelos órgãos da Prefeitura do Município de São Paulo. O artigo 5º do Decreto estabelece que "As críticas e sugestões enviadas deverão, obrigatoriamente, estar devidamente identificadas, com indicação das cláusulas, itens e subitens do edital a que se referirem, acompanhadas da argumentação que a justifique, sobre as quais o órgão licitante fará a respectiva análise". Não se trata, portanto, de uma consulta pública para ouvir as experiências dos usuários com os glicosímetros, mas para receber observações acerca das cláusulas do edital do pregão. Isso ficou ainda mais claro com as respostas enviadas pela PMSP através do twitter:









Portanto, os usuários não devem enviar relatos de experiência com glicosímetros para esta consulta pública, pois ela não se destina a isso. Mas os usuários podem continuar registrando suas reclamações perante a 
ANVISA e a ouvidoria central da saúde da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, bem como exigindo a troca do aparelho defeituoso na Unidade Básica de Saúde onde está cadastrado, conforme manifestação expressa da Prefeitura do Município de São Paulo que "todos os aparelhos com defeito comprovado serão recolhidos e substituídos". Para comprovar o defeito, leve registro de comparação entre o resultado do glicosímetro e resultado de exame de sangue que demonstre a disparidade entre eles.

Registro uma vez mais que o meu aparelho (assim como de outras pessoas) funciona perfeitamente. O problema não parece ser defeito do projeto do glicosímetro, mas o número grande de unidades defeituosas, que devem ser trocadas nas Unidades Básicas de Saúde.

Em resumo, seguimos firmes e fortes com o glucoleader em São Paulo! Cabe então exigir da PMSP que facilite a troca dos glicosímetros com defeito, pois está previsto no contrato entre a Prefeitura e a empresa Iquego a substituição das unidades defeituosas, e porque as pessoas com diabetes não podem se sujeitar a erros de acurácia que comprometem sua saúde e sua vida.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Consulta pública de glicosímetros: o cavalo de Troia da Prefeitura para as pessoas com diabetes de São Paulo

O autocuidado de pessoas com diabetes envolve uma série de procedimentos e também o uso de insumos e medicamentos para controle da glicemia. Para quem aplica insulina um dos insumos essenciais é o glicosímetro, que indica a taxa de "açúcar" no sangue da pessoa. O aparelho auxilia na adaptação das doses de insulina conforme o tipo e quantidade de alimentação e de atividades desenvolvidas ao longo do dia, bem como no controle da queda e elevação glicêmica (hipoglicemia e hiperglicemia), que pode levar o paciente ao coma e à convulsão, respectivamente.


Em 2005, a Prefeitura de São Paulo iniciou a implantação do Programa de Autonomonitoramento Glicêmico (AMG), através do qual os usuários do SUS insulino-dependentes recebem glicosímetro, tiras e lancetas para acompanhamento e controle glicêmico. Sempre experimentamos problemas com o fornecimento dos insumos, mas o desabastecimento nunca durou mais de um mês. No início da gestão Doria, entretanto, as fitas medidoras e as lancetas não foram fornecidas por mais de 3 meses. Apenas em abril a dispensação foi regularizada, mas parcialmente, em número inferior à demanda. Na minha Unidade Básica de Saúde, UBS Dr. Humberto Pascalli, no bairro da Santa Cecília, o consumo médio mensal (CMM) equivale a 71 mil tiras e lancetas, mas a unidade recebia entre 20 a 40 mil, e em meses alternados. O problema só foi solucionado por completo no final de 2017, quando se iniciou a troca da marca dos glicosímetros e das tiras medidoras após pregão realizado em novembro de 2017.

Embora solucionado o desabastecimento, outros problemas surgiram. Além de irregularidades na execução do contrato entre a Prefeitura e a fabricante, investigadas pelo Tribunal de Contas do Município de São Paulo, muitos dos novos glicosímetros distribuídos apresentaram defeito de acurácia, conforme denunciado pelos usuários nas redes sociais. Como a ANVISA ainda não realiza o teste de acurácia dos glicosímetros liberados para comercialização no Brasil, não é possível saber se o aparelho é defeituoso em seu projeto ou apenas nas unidades que apresentam disparidade de medidas. Uso este glicosímetro fornecido pela Prefeitura, e as medidas são consonantes quando comparadas com outros dispositivos de medição de glicemia. Ao que tudo indica, o problema reside no grande número de glicosímetros defeituosos, e na recusa de algumas unidades de saúde em fazer a troca por outro (prevista no contrato firmado com a Prefeitura) quando solicitada pelos usuários.

Em razão do grande número de reclamações dos usuários, aproveitando a realização de novo pregão para aquisição de tiras, lancetas e glicosímetros, a Prefeitura de São Paulo abriu uma consulta pública (CONSULTA PÚBLICA Nº 008/2018-SMS.G), vigente entre 08/05/18 e 11/05/18, para receber manifestações das pessoas com diabetes que usam glicosímetros para o cuidado em saúde.




A princípio, parece uma ideia interessante abrir o processo licitatório ao controle e participação social. Mas esta consulta pública, da forma como está conduzida, parece ser um novo problema. Apresento os motivos usando como comparação as consultas públicas da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (CONITEC), órgão do Ministério da Saúde com larga experiência na utilização dessa ferramenta de participação social:


- prazo de 4 dias para envio das manifestações: o tempo da consulta pública é muito curto, insuficiente à adequada, ampla e eficaz divulgação e coleta de contribuições da sociedade (ainda que seja este o padrão, conforme se verifica nas demais consultas públicas da PMSP). O prazo das consultas públicas de incorporação de tecnologias ao SUS é de 20 dias, que pode ser prorrogado se o caso exigir;





- divulgação nula da consulta pública: olhando as páginas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo nas redes sociais (facebook, twitter e instagram), se constata que em nenhuma delas a consulta pública em questão foi divulgada. A divulgação se deu apenas através do Diário Oficial do Município, que ninguém lê. As consultas públicas de incorporação de tecnologias ao SUS são amplamente divulgadas pelas redes sociais (no perfil do twitter da CONITEC há publicações sobre diversas delas) e também através do envio de e-mails aos assinantes do mailing da Comissão;

- associação obscura entre um pregão e uma consulta pública: se o resultado do vencedor do pregão não é conhecido por antecipação, enviaremos contribuições falando exatamente o que? Sobre a experiência com todos os glicosímetros que usamos na vida, ou apenas com aqueles referentes aos modelos/marcas que participam do pregão? E como saberemos quais estão participando do pregão antes dele acontecer? Além disso, no edital do pregão não há qualquer menção à consulta pública, ou seja, não existe relação entre o resultado do pregão e envio de manifestações dos usuários.

- possibilidade de acompanhamento dos resultados: a Prefeitura não indica como os usuários poderão conferir a quantidade e o teor das contribuições enviadas. Onde essas manifestações serão arquivadas? Serão disponibilizadas à sociedade? Nas consultas públicas da CONITEC, após encerramento do prazo de vigência, os depoimentos e respostas ao questionário são disponibilizados ao público numa página própria. No caso da consulta pública de incorporação de bomba de insulina, por exemplo, podemos conferir os resultados nesta página: http://conitec.gov.br/images/Consultas/Contribuicoes/2018/CP_CONITEC_08_2018_Experiencia_Opiniao_Bomba_de_insulina_para_diabetes_mellitus_tipo_1.pdf. No site da PMSP não há qualquer campo para visualização das contribuições recebidas nas consultas públicas;



- ausência de regulamentação: que procedimento está sendo seguido pela Prefeitura de São Paulo nesta consulta pública, que normas regulamentam o processo? Isso não é informado aos usuários para que possam conferir se a consulta pública respeita as regras de participação, se é que essas regras existem. As consultas públicas da CONITEC seguem as normas previstas na Lei Federal n° 12.401/2001 e no Decreto n° 7.646/2011, que especificam em detalhes as etapas do processo de incorporação de tecnologias e as normas de realização das consultas públicas;


- indicação do endereço errado para envio das contribuições: na publicação do Diário Oficial o endereço eletrônico indicado para envio das manifestações é 1CJLSMS@PREFEITURA.SP.GOV.BR, mas o correto é: meirefreitas@prefeitura.sp.gov.br

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Tudo indica que essa consulta pública é um cavalo de Troia ofertado pela Prefeitura às pessoas com diabetes de São Paulo, uma falsa abertura do processo de aquisição de glicosímetros ao controle social, uma arma contra os próprios usuários, como argumento de suporte de uma decisão não aprovada pela população, mas que ganhará essa característica (ainda que que pela alegação de omissão na consulta pública) caso não questionada. Ou, numa outra hipótese, será uma desculpa para garantir o monopólio da empresa Roche no fornecimento dos insumos de diabetes à Prefeitura de São Paulo, mantido por dez anos antes da substituição dos glicosímetros. Mas o que essa consulta pública indica mesmo é que a gestão Doria/Covas não tem qualquer compromisso com a saúde dos paulistanos com (e sem) diabetes, e que o golpe está disseminando como prática no Brasil, já que essa consulta pública de participação social tem pouco ou nada.

Assim, devemos não apenas enviar nossos relatos de experiência ao endereço eletrônico indicado (
meirefreitas@prefeitura.sp.gov.br), mas também questionar os reais objetivos dessa consulta pública, perguntando à Prefeitura Municipal de São Paulo através de email, twitter, facebook e instagram:

- As contribuições devem envolver exatamente o que? Nossa experiência com todos os glicosímetros que usamos na vida, ou apenas com aqueles referentes aos modelos/marcas que participam do pregão? E como saberemos quais estão participando do pregão antes dele acontecer? Qual a relação entre o resultado do pregão e envio de manifestações dos usuários?

- Onde essas manifestações serão arquivadas? Serão disponibilizadas à sociedade? Se sim, onde?

- Que procedimento está sendo seguido pela Prefeitura de São Paulo nesta consulta pública, que normas regulamentam o processo?